sábado, 29 de outubro de 2011

Em busca do Jesus histórico 5: Criticismo textual

Vimos pelos textos anteriores que não é possível confiar no que está escrito como verdades históricas. Primeiro temos o problema do telefone sem fio: a história vai passando de boca em boca e se alterando aos poucos. Segundo, temos alterações intencionais no rumo da história. Pessoas em geral ignoram que os autores deliberadamente desobedeciam a lei divina "não levantarás falso testemunho". Mas não temos escolha, estes são os relatos que temos a respeito da vida de Jesus. O que faremos então? Como escolheremos entre os relatos mais prováveis e os menos prováveis?

Como separaremos o trigo do joio?

Existem quatro critérios comumente utilizados pelos historiadores para tentar determinar quem foi e o que fez o Jesus histórico. Que fique claro que não dá para determinar com certeza se Jesus fez uma coisa ou outra, mas é possível estimar a probabilidade com que um relato tenha sido histórico ou inventado.

O primeiro é o critério dos múltiplos testemunhos:
é mais provável que tenha acontecido algo que é relatado por mais de uma fonte independente do que algo que vem de uma única fonte. É preciso notar, entretanto, que, por exemplo, se Marcos relatou um evento que não aconteceu, Lucas e Mateus também vão relatar o mesmo evento porque eles usaram o evangelho do primeiro como fonte, então não podem ser considerados fontes independentes. Um exemplo, várias fontes dizem que Jesus foi batizado por João Batista, e também que Jesus pregou contra o divórcio. Vale lembrar que, do ponto de vista histórico, as fontes fora da bíblia são tratadas com igual teor que as que estão na bíblia.

Em segundo vem a dissimilaridade: se um livro relata um evento que parece ir contra o que o autor acredita ou que ele não teria motivos para inventar, então é provável que ele não tenha inventado. Se um evento parece ir muito a favor do ponto de vista do autor, deve-se suspeitar da sua historicidade. Nota-se facilmente que cada evangelista ou cristão primitivo tem um ponto de vista, uma teologia que ele quer transmitir através dos evangelhos e das cartas.

Cada evangelho é como um óculos através do qual a gente pode tentar observar o que aconteceu. Mas os evangelhos não são neutros ou objetivos, os óculos não são incolores. Cada óculos tem uma cor diferente. Quando se olha através de um óculos laranja, tudo fica mais laranja do que realmente é. Se olhamos através de um óculos alaranjado e vemos um objeto azulado, podemos concluir que o objeto é realmente azul, e provavelmente mais azul do que estamos vendo. Agora, se vemos um objeto laranja, devemos suspeitar que aquele objeto não seja tão laranja quanto parece. Talvez nem sequer seja real, mas apenas uma mancha no vidro.

Na parte 2, eu apresentei o critério da dissimilaridade para defender a existência histórica de Jesus, usando como exemplos o batismo por João Batista e a crucificação. Ou seja, de acordo com este critério, estes eventos são provavelmente históricos. Os historiadores costumam ver o batismo por João Batista como uma pista de que Jesus foi, de fato, discípulo deste antes de se tornar um mestre: é muito suspeito que os evangelhos tenham escondido isso de propósito, a ideia de um messias com um mestre não é muito convincente. Por outro lado, o nascimento de Jesus em Belém parece ser muito conveniente com a ideia de messias devido às profecias das escrituras, sendo assim é suspeito de ter sido inventado.

Terceiro, o critério da coerência social: os relatos que são coerentes com a cultura ou a sociedade da época são mais prováveis de ter acontecido do que os que não o são. Por exemplo, neste critério encaixa-se o anacronismo, que é a atitude comum de atribuir à história que ocorreu no passado eventos e costumes do tempo do próprio autor.
A doxologia ao final de Mateus 6:13 é comumente vista como adição posterior, sendo inclusive omitida nas melhores traduções:

E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal, porque teu é o Reino, o poder e a glória para sempre. Amém’.

Compare com esta tradução:

e não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal.
Mateus 6:13
[E] não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal.

A adição deste trecho foi feita por influência litúrgica. Aqui vemos que copistas adicionaram ao texto antigo uma crença vindos de sua própria época, não da época sendo relatada

Em Mateus 18, vemos Jesus criando regras para serem seguidas nas igrejas. Porém, igrejas não são da época de Jesus e uma evidência disso é que é difícil encontrar a palavra "igreja" em outros evangelhos ou mesmo neste. Vemos então que Mateus (isto é, o autor do evangelho, não me refiro ao apóstolo) escreve regras para as igrejas de seu tempo.

Os quatro evangelhos contam a história de Barrabás.

Por ocasião da festa o governador soltava um preso, a pedido do povo. Havia um chamado Barrabás, preso com outros sediciosos, os quais em um motim haviam feito uma morte. Chegando o povo, começou a pedir a graça que lhe costumava fazer. Disse-lhe Pilatos: Quereis que eu vos solte o Rei dos Judeus?

Vemos aqui o relato de um costume: Pilatos permitiria a soltura de um prisioneiro. Este costume não é relatado em nenhuma outra fonte e Pilatos, em vez de costumar ser complacente, pelo contrário, era insensível com os costumes judeus e também cruel. O historiador Josefo conta que houve um protesto dos judeus por dinheiro do templo ter sido usado para construir um aqueduto. Pilatos ordenou que soldados se misturassem com a multidão enquanto ele conversava com os judeus e, ao seu sinal, os soldados atacaram os manifestantes, ferindo e matando a esmo.

Este famigerado governador da Judeia não parecia do tipo que deixaria o povo escolher alguém para ser liberto. Barrabás é retratado como um membro de um motim que causou uma morte. Ele parece ser um zelota. Os zelotas eram uma seita religiosa que pregava que os judeus deveriam expulsar os romanos da palestina através da luta armada. Esta seita é conhecida por ter liderado a Primeira Guerra Judaico-Romana entre 66 e 73 d.C., época em que o evangelho de Marcos foi escrito. Então Marcos parece ter adicionado uma crítica a este movimento em seu evangelho: como podiam os judeus dar preferência à violência do movimento zelota em vez do pacifismo ensinado pelo Cristo?

Alguém poderia notar que o critério dos múltiplos testemunhos é a favor da existência e da soltura de Barrabás, então há uma pequena chance deste relato ser histórico até certo ponto. Por outro lado, o próprio nome Barrabás parece ter sido inventado: Bar Abbas quer dizer filho do pai. Compare isto a um dos títulos mais comuns de Jesus: filho do homem. Barrabás é um rival. É mais provável que não tenha existido.

Outro exemplo de anacronismo é a profecia de destruição do templo de Jerusalém. Discutiremos isso em outra postagem.

O último critério é o da a coerência: se alguma característica da história já foi estabelecida por outros métodos e algum relato, que não é suspeito ou descartável por algum outro critério, parece ser coerente com esta característica, então ele é, por convenção, considerado como histórico.
A partir do próximo texto, veremos qual o ponto de vista defendido por cada evangelho, quais são os óculos que cada autor coloca para enxergar a vida do famoso galileu. Estes óculos são de cores bem distintas e isto é uma pista das várias formas de cristianismo já existentes no século I.


< Parte 4 Parte 6 > 
Isto disseram seus pais, porque tinham medo dos judeus; porquanto estes já tinham combinado que se alguém confessasse ser Jesus o Cristo, fosse expulso da sinagoga.
João 9:22
Barrabás, preso com outros sediciosos, os quais em um motim haviam feito uma morte.

Chegando o povo, começou a pedir a graça que lhe costumava fazer.

Disse-lhe Pilatos: Quereis que eu vos solte o Rei dos Judeus?
Marcos 15:6-9
E, tomando o pão, e havendo dado graças, partiu-o, e deu-lho, dizendo: Isto é o meu corpo, que por vós é dado; fazei isto em memória de mim.

Semelhantemente, tomou o cálice, depois da ceia, dizendo: Este cálice é o novo testamento no meu sangue, que é derramado por vós.
Lucas 22:19-20
E, tomando o pão, e havendo dado graças, partiu-o, e deu-lho, dizendo: Isto é o meu corpo, que por vós é dado; fazei isto em memória de mim.

Semelhantemente, tomou o cálice, depois da ceia, dizendo: Este cálice é o novo testamento no meu sangue, que é derramado por vós.
Lucas 22:19-20

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Em busca do Jesus histórico 4: E (não é assim que) nasce o messias

Todos conhecem a história tradicional: a gruta, a manjedoura, os animais, os três reis magos, os anjos, os pastores. Atrelado ao nascimento do Cristo está também o nascimento de João Batista, seu precursor, fruto de uma a gravidez miraculosa. Seria essa realmente a história que a bíblia conta? E quanto desta narrativa é confiável?
Estou utilizando, nos meus estudos, A Bíblia de Jerusalém, uma bíblia (católica) de estudos da editora Paulus. Uma referência utilizada é esta aula sobre o evangelho de Lucas ministrada na Universidade de Yale.


Evangelho de Mateus


Maria achou-se “grávida pelo Espírito Santo”. José decidiu repudiá-la, mas recebeu a visita do anjo do Senhor em sonho e aceitou ser o pai da criança.

Depois que Jesus nasceu em Belém da Judeia, nos dias do rei Herodes, magos vindos do Oriente chegaram a Jerusalém e perguntaram: “Onde está o recém-nascido rei dos judeus? Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo”.
Mateus 2:1-2

O primeiro detalhe a se notar é que não há nenhuma explicação do motivo pelo qual José e Maria encontram-se em Belém. Presume-se que eles moravam lá. E os magos não são ditos reis. Na verdade, a palavra grega utilizada, magos, designa membros da casta de sacerdotes do zoroastrismo, que tinham a reputação de serem astrólogos.
Os magos conversam com Herodes e dizem que o messias deve nascer em Belém, e o rei pede a eles que, quando voltassem, informassem a ele onde o menino se encontrava para poder homenageá-lo. Os magos continuaram o seu caminho e a estrela parou sobre onde o menino estava. Como seria possível? Uma boa teoria é que descrição da estrela de Belém assemelha-se às características do aparecimento do cometa Haley em 66 d.C.: do ponto de vista de alguém de Belém, ele apareceu no leste e foi indo em direção a oeste até ficar aparentemente parada sobre Belém ou alguma cidade próxima. Nenhum outro cometa teria exibido essas características próximo ao nascimento de Jesus. Aparentemente o evangelista presenciou esta estrela e decidiu usá-la na sua história.

Toda a ideia de um nascimento anunciado por uma estrela e que recebe visita de pessoas importantes não é original de Mateus, esta é uma receita antiga que teria ocorrido, de acordo com relatos, em nascimentos de semideuses ou deuses da antiguidade. Por exemplo, a história elaborada por Mateus é bem parecida com a história a respeito do nascimento do imperador Augusto (63 d.C.) e pode ter tomado esta como base.

Ao entrarem na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o adoraram. Então abriram os seus tesouros e lhe deram presentes: ouro, incenso e mirra.
Mateus 2:11

Casa? Não era uma caverna e Jesus não estava numa manjedoura? Não, a natividade na caverna vem do Evangelho da Infância de Tiago. E não há nenhuma menção à manjedoura em Mateus. E onde está escrito que os reis magos eram três? E onde está o nome tradicional deles, Melchior, Baltasar e Gaspar? Estes nomes não se encontram na bíblia, mas apenas num manuscrito escrito em Alexandria por volta do ano 500 d.C. denominado Excerpta Latina Barbari.

Os magos voltaram por outro caminho para não dizer a Herodes onde estava o menino e José, avisado em sonho pelo anjo, partiu para o Egito.

Quando Herodes percebeu que havia sido enganado pelos magos, ficou furioso e ordenou que matassem todos os meninos de dois anos para baixo, em Belém e nas proximidades, de acordo com a informação que havia obtido dos magos.
Mateus 2:16

Meninos de dois anos para baixo? Então já fazia uns dois anos que o menino havia nascido até a visita dos magos que se deu em Belém. E o anjo novamente apareceu em sonho a José para que ele voltasse para a Judeia.

Mas, ao ouvir que Arquelau estava reinando na Judeia em lugar de seu pai Herodes, [José] teve medo de ir para lá. Tendo sido avisado em sonho, retirou-se para a região da Galileia e foi viver numa cidade chamada Nazaré. Assim cumpriu-se o que fora dito pelos profetas: “Ele será chamado Nazareno”.
Mateus 2, 22-23

Está claro pelos versículos acima que os pais do nazareno não moravam em Nazaré, mas em Belém, e só depois deles terem voltado do refúgio no Egito é que eles foram morar em Nazaré. E aqui percebemos mais um desvio na famosa história.

Perceba que o massacre dos inocentes e a fuga para o Egito soa muito como a história de Moisés, onde o faraó mandou matar os recém-nascidos e Moisés foi acolhido pela filha do faraó, uma egípcia (Êxodo 1:15-22; 2:1-10).

Alguém poderia perguntar: em que parte do antigo testamento está escrito “Ele será chamado Nazareno”? Em lugar nenhum. O que mais se aproxima deste texto é Juízes 13,5, que diz “o menino será nazireu”, o que quer dizer consagrado. Neste caso, o menino é Sansão.

Mas onde estão os anjos? E os pastores? E o recenseamento do Império Romano? A visita de Maria a Isabel? As orações, o Magnificat e o Benedictus? Mateus não conta nada disso. Quem nos conta isso é Lucas.


Evangelho de Lucas


Tudo começa no nascimento de João Batista.

Abraão e Sara já eram velhos, de idade bem avançada, e Sara já tinha passado da idade de ter filhos.
Gênesis 18:11

Opa! Desculpem-me, abri a bíblia na página errada.

Certo homem de Zorá, chamado Manoá, do clã da tribo de Dã, tinha mulher estéril. Certo dia o anjo do Senhor apareceu a ela e lhe disse: “Você é estéril, não tem filhos, mas engravidará e dará à luz um filho. Todavia, tenha cuidado, não beba vinho nem outra bebida fermentada, e não coma nada impuro; e não se passará navalha na cabeça do filho que você vai ter, porque o menino será nazireu, consagrado a Deus desde o nascimento; ele iniciará a libertação de Israel das mãos dos filisteus”.
Juízes 13:2-5

De novo, abri a bíblia na página errada. Ah, agora sim:

No tempo de Herodes, rei da Judeia, havia um sacerdote chamado Zacarias, que pertencia ao grupo sacerdotal de Abias; Isabel, sua mulher, também era descendente de Arão. Mas eles não tinham filhos, porque Isabel era estéril e ambos eram de idade avançada.
Então um anjo do Senhor apareceu a Zacarias, à direita do altar do incenso. O anjo lhe disse: “Não tenha medo, Zacarias; sua oração foi ouvida. Isabel, sua mulher, lhe dará um filho, e você lhe dará o nome de João. Ele nunca tomará vinho nem bebida fermentada, e será cheio do Espírito Santo desde antes do seu nascimento.”
Lucas 1:5,7,11,13,15b

Compare também com este trecho:

Diga o seguinte aos israelitas: Se um homem ou uma mulher fizer um voto especial, um voto de separação para o Senhor como nazireu, terá que se abster de vinho e de outras bebidas fermentadas.
Números 6:2-3a

A mesma temática encontra-se também em 1 Samuel 1. Está claro que a história de Lucas a respeito de João Batista foi adaptada das escrituras. E veja também que, para Lucas, este é o nazireu. Também são encontrados paralelos no antigo testamento para os versículos 16 a 25.
Muitos conhecem o que o anjo Gabriel veio anunciar a Maria:

O anjo, aproximando-se dela, disse: “Alegre-se, agraciada! O Senhor está com você!”
Lucas 1:28

Detalhe: a tradução correta é “alegre-se” e não “ave”, a palavra em grego que encontra-se nos manuscritos é chairó, “alegre-se, rejubile-se”. Então, nada de reverência do anjo ao estilo romano.

Portanto o Senhor mesmo vos dará um sinal; eis que uma donzela conceberá e dará à luz um filho, e por-lhe-á o nome de Emanuel.
Isaías 7:14

Emanuel? Opa!

Você ficará grávida e dará à luz um filho, e lhe porá o nome de Jesus.
Lucas 1:31

Lucas copiou o trecho trocando o nome!

Há um problema de tradução comum de Isaías 7:14 (este é o motivo pelo qual eu citei uma tradução diferente deste). Os manuscritos em hebraico deste livro trazem a palavra ha'almah que quer dizer mulher jovem, ou donzela. Ao traduzirem o livro de Isaías para o grego, que era a versão utilizada pelo autor do evangelho, esta palavra foi traduzida como parthenos, que quer dizer virgem. E assim, por um erro de tradução, surgiu a ideia de que Maria deveria ser virgem.

Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo. O Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi e ele reinará para sempre sobre o povo de Jacó; seu Reino jamais terá fim.
Lucas 1:32-33

Novamente temos um trecho adaptado do livro de Isaías:

Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, e o governo está sobre os seus ombros. E ele será chamado Maravilhoso Conselheiro, Deus Poderoso, Pai Eterno, Príncipe da Paz. Ele estenderá o seu domínio, e haverá paz sem fim sobre o trono de Davi e sobre o seu reino, estabelecido e mantido com justiça e retidão, desde agora e para sempre.
Isaías 9:6-7a

Maria, então, vai visitar Isabel “numa cidade de Judá” (não está claro qual cidade). Esta exclama algo parecido com o que se encontra no livro de Judite:

Ozias, príncipe do povo de Israel, acrescentou: “Minha filha, tu és bendita do Senhor Deus altíssimo, mais que todas as mulheres da terra. Bendito seja o Senhor, criador do céu e da terra, que te guiou para cortar a cabeça de nosso maior inimigo!”
Judite 13:23-24

Exceto, é claro, pela parte de cortar a cabeça. (Observação: na minha bíblia, este trecho está no versículo 18). E Maria responde:

Meu coração exulta no Senhor;
no Senhor minha força é exaltada.
Minha boca se exalta sobre os meus inimigos,
pois me alegro em tua libertação.
Não há ninguém santo como o Senhor;
não há outro além de ti;
não há rocha alguma como o nosso Deus.
Não falem tão orgulhosamente,
nem saia de suas bocas tal arrogância,
pois o Senhor é Deus sábio;
é ele quem julga os atos dos homens.
O arco dos fortes é quebrado,
mas os fracos são revestidos de força.
Os que tinham muito, agora trabalham por comida,
mas os que estavam famintos, agora não passam fome.
O Senhor é quem dá pobreza e riqueza;
ele humilha e exalta.
Levanta do pó o necessitado
e, do monte de cinzas ergue o pobre;
ele os faz sentarem-se com príncipes
e lhes dá lugar de honra.
Pois os alicerces da terra são do Senhor;
sobre eles estabeleceu o mundo.”
1 Samuel 2:1b-5a,7-8

Ou, melhor dizendo:

Minha alma engrandece ao Senhor
e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador,
pois atentou para a humildade da sua serva.
De agora em diante, todas as gerações
me chamarão bem-aventurada,
pois o Poderoso fez grandes coisas em meu favor;
santo é o seu nome.
A sua misericórdia estende-se aos que o temem,
de geração em geração.
Ele realizou poderosos feitos com seu braço;
dispersou os que são soberbos no mais íntimo do coração.
Derrubou governantes dos seus tronos,
mas exaltou os humildes.
Encheu de coisas boas os famintos,
mas despediu de mãos vazias os ricos.
Ajudou a seu servo Israel,
lembrando-se da sua misericórdia
para com Abraão e seus descendentes para sempre,
como dissera aos nossos antepassados".
Lucas 1:46b-55

Maria voltou para casa, em Nazaré. Não está muito claro se ela ficou para o nascimento do filho de sua prima Isabel. Após o nascimento de João, Zacarias também fez uma oração que provavelmente também foi criada pelo evangelista a partir de alguns salmos e passagens de outros livros.

Houve então um recenseamento “de todo o mundo habitado” (que, em termos da época, quer dizer no Império Romano). E foram então José e Maria para Belém. O menino nasceu, foi envolto em faixas e colocado numa manjedoura, pois não havia um lugar para eles na hospedaria.

Agora vem a visita dos magos, você deve imaginar! Não, Lucas não menciona magos, apenas a visita de anjos e de pastores ao recém-nascido. Os anjos fizeram até um coro louvando a Deus.

Oito dias depois, o menino foi circuncidado. De acordo com a lei judaica (ver Levítico 12:2-4), a mãe deve esperar trinta dias, este é o período de purificação. Lucas narra que, depois deste período, José e Maria foram a Jerusalém para apresentá-lo no templo, oferecendo rolas ou pombos em sacrifício. Lá temos um profeta que faz um pequeno cântico, o Nunc Dimittis, baseada em várias partes do livro Isaías (52,10; 46,13; 42,6; 49,6). Também aparece uma profetisa, de nome Ana, cujas características são bem semelhantes à de Judite (8,4-6).

De Jerusalém, Maria e José vão diretamente para Nazaré, que, conforme a narração, é a cidade onde eles moravam. Enquanto que em Mateus eles receberam a visita dos magos por volta de dois anos após o nascimento do menino, segundo Lucas, eles já voltaram muito antes a Nazaré. E nada de massacre dos inocentes ou de ida ao Egito.

As duas narrativas são muito diferentes e contém contradições entre si. Sendo assim, fica muito difícil confiar nas narrativas do nascimento de Jesus e de João Batista como relatos históricos. Muitos historiadores duvidam que João Batista tenha sequer tido algum parentesco com Jesus.

Mas afinal, no que poderemos confiar então? Como decidiremos quais eventos fazem parte da história e quais foram adicionados a ela? De que maneira separaremos quem foi Jesus Cristo do que as pessoas diziam que ele era?

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Em busca do Jesus histórico 3: Lucas, o mentiroso descarado


Eu mesmo investiguei tudo cuidadosamente, desde o começo, e decidi escrever-te um relato ordenado, ó excelentíssimo Teófilo, para que tenhas a certeza das coisas que te foram ensinadas.
Lucas 1:3-4

O que será que Lucas quer dizer com “investigar tudo cuidadosamente” e “relato ordenado”? Será que Lucas é um historiador e está tentando relatar os eventos de forma precisa, em ordem cronológica? Não, de forma alguma! Lucas decididamente altera não só a ordem dos eventos, como também os próprios eventos, com o intuito de defender sua ideologia.

Analisemos os relatos do nascimento de Jesus que Lucas e Mateus narram em seus evangelhos para tentar descobrir a data aproximada de seu nascimento. Tanto Lucas 1, 5 quanto Mateus 2:1 dizem que Jesus nasceu no tempo do rei Herodes. De acordo com os relatos do historiador Flávio Josefo, Herodes, o grande, partiu deste mundo em 4 a.C. Neste caso, Jesus deve ter nascido antes do ano 4 a.C. Lucas 2:1-2 também diz que Jesus nasceu durante o censo de Quirino. Novamente de acordo com Josefo, o censo de Quirino se deu em 6 d.C. Além do mais, o primeiro diz que o censo foi “no mundo todo”, enquanto Josefo dá a entender que este se deu na Síria e na Judeia. Algo não está correto.

No capítulo 3, Lucas dá uma data aproximada para o início do ministério de João Batista: o décimo quinto ano do império de Tibério César, o que seria em 28 ou 29 d.C. João 2:20 dá outra dica de data para o início do ministério de Jesus: já haviam se passado 46 anos do início da construção do templo de Jerusalém, o que situa este evento entre 27 e 29 d.C. Estas datas estão mais ou menos coerentes. Além disso, Lucas relata que Jesus tinha aproximadamente 30 anos no seu batismo. Se Jesus tivesse nascido em 6 d.C., ele teria por volta de 22 anos no início de seu ministério. Então, nada de nascimento durante o censo de Quirino.

Está claro o motivo pelo qual Lucas tentou colocar o nascimento de Jesus durante o censo de Quirino: ele quer dar uma justificativa para Jesus ter nascido em Belém devido às profecias messiânicas. Afinal de contas, ele era nazareno e não de Belém. Esta parece ser uma total fabricação: nenhum censo do Império Romano teria forçado as pessoas irem à cidade natal para se alistar. Lucas quer nos fazer engolir um sapo. Não, caro leitor, Jesus não nasceu em Belém.

Tem outro sapo que Lucas quer nos fazer engolir: a descendência de Davi. Comparando a genealogia dada por Mateus 1 com a dada por Lucas 3, vemos que elas são extremamente diferentes, exceto a descendência de Abraão até Davi. Há, entretanto, um pequeno erro nesta: Lucas troca Aram por Arni (que são possíveis variantes do mesmo nome) e adiciona um indivíduo, Admin (3:33), que é omitido em alguns manuscritos. Então, aparentemente, mesmo tento o antigo testamento como referência para a genealogia de Davi, Lucas erra. A não ser que Admin tenha sido adicionado posteriormente, coisa que eu, pessoalmente, duvido: é mais provável que este tenha sido retirado dos outros manuscritos para apagar o erro.

De Davi até Jesus (descontando Davi), de acordo com Mateus, temos 27 gerações e, de acordo com Lucas, 42 gerações. E vemos então outro sapo. É possível ver mais um destes em Mateus, onde ele copia as gerações de Davi até Zorobabel dada pelo Antigo Testamento, omitindo algumas para poder separar as gerações em grupos de catorze. E ele não saber contar: o último grupo tem um indivíduo a menos.

O engraçado é que, para argumentar que Jesus era descendente de Davi, Lucas e Mateus não precisavam se dar ao trabalho de inventar uma genealogia, bastava-lhe um pouco de matemática e também considerar mulheres como descendentes. É muito provável que praticamente todo o povo da Galileia, da Judeia e da Samaria da época de Jesus era descendente de Davi. Esta é, portanto, uma profecia verdadeira e inútil.

A teoria mais aceita entre os historiadores é que tanto Lucas quanto Mateus, ambos escritos aproximadamente entre 80 e 90 d.C., teriam utilizado duas fontes em comum: o evangelho de Marcos e uma fonte, denominada Q, que não sobreviveu ao tempo, mas que deveria conter uma lista de ensinamentos de Jesus mais ou menos no modelo do evangelho de Tomé.

Lucas (4:14-15) começa o ministério de Jesus mencionando brevemente que Jesus ensinou nas sinagogas por toda a Galileia e voltou para Nazaré. Lá, vemos o primeiro discurso a ser narrado pelo evangelista (4:16-30).

Jesus lhes disse: “É claro que vocês me citarão este provérbio: ‘Médico, cura-te a ti mesmo!’ Faze aqui em tua terra o que ouvimos que fizeste em Cafarnaum.”
Lucas 4:23

O discurso é rejeitado e os seus conterrâneos tentam jogar o nazareno de um precipício, mas ele escapa. A seguir (4, 31-37), Jesus vai a Cafarnaum para expulsar um demônio. Entretanto, Marcos narra esta expulsão no início do ministério de Jesus e só tempos depois é que ele volta a Nazaré para pregar. Em Mateus, Jesus também demora um tempo até voltar a Nazaré, onde ele sofre rejeição, embora não de forma tão exagerada quanto Lucas. Então não só Lucas altera a ordem dos eventos, deixando uma pista desta alteração no versículo 23, como também exagera a animosidade dos nazarenos contra o Cristo.

O que está acontecendo? Por que agora Lucas está alterando a ordem dos eventos? Por que, para Lucas, parece tão importante que Jesus tenha começado tudo em Nazaré? E por que ele está tentando exagerar a rejeição que o profeta sofrera em sua terra natal? Por que tanta confusão?

Vejamos mais uma alteração de ordem na narrativa. Há um consenso entre os historiadores que o autor do evangelho de Lucas é também o autor de Atos dos Apóstolos.

E Saulo estava ali, consentindo na morte de Estêvão. Naquela ocasião desencadeou-se grande perseguição contra a igreja em Jerusalém. Todos, exceto os apóstolos, foram dispersos pelas regiões da Judeia e de Samaria.
Atos 8:1

E pulando três capítulos:

Os que tinham sido dispersos por causa da perseguição desencadeada com a morte de Estêvão chegaram até à Fenícia, Chipre e Antioquia, anunciando a mensagem apenas aos judeus. Alguns deles, todavia, cipriotas e cireneus, foram a Antioquia e começaram a falar também aos gregos, contando-lhes as boas novas a respeito do Senhor Jesus.
Atos 11, 19-20

De novo, seu Lucas? O autor aqui parece ter uma fonte escrita com os relatos a respeito da morte de Estêvão, mas decide cortar a narração em duas partes para inserir três capítulos do seu livro entre elas para só depois colocar a conclusão da história. Mas o que haveria de tão importante para ser colocado antes da história de um grupo de cristãos anônimos indo pregar em terras não judaicas?

Eis a explicação: ao longo dos Atos dos Apóstolos, Paulo vai de cidade em cidade, pregando primeiro aos judeus, é rejeitado e depois vai pregar aos gentios. A evangelização em Atos começa em Jerusalém, onde há grande rejeição do cristianismo, e depois parte para a Judeia, para a Samaria, depois para os gentios e finalmente chega em Roma, que simboliza o mundo. Ou seja, cada vez mais longe de Jerusalém. A teologia de Lucas é que todo verdadeiro profeta começa em casa, é fortemente rejeitado e depois parte para fora de casa, onde é aceito, embora sempre seja perseguido.

Oras, se Jesus é verdadeiro profeta, ele deve ter começado a pregação em sua própria casa. É por isso que Lucas coloca o primeiro discurso importante de Jesus em Nazaré e narra uma forte rejeição. Esse também é o motivo por que o autor atrasa a narração das pregações dos cristãos anônimos: entre Atos 8 e 11, acontece a pregação de Filipe na Samaria e depois a de Pedro aos gentios. Para o autor, é preciso que alguém pregue na Samaria antes que os gentios também recebam a boa nova. A primeira pregação aos gentios (incluindo gregos) deve ser feita por alguém importante, como Pedro, não por indivíduos anônimos que fugiram por causa da perseguição a Estêvão. Isso estragaria a ideia que Lucas quis passar aos leitores.

Deixe-me esclarecer uma coisa. É provável que o evangelista, seja ele Lucas, o conhecido companheiro de Paulo, ou quem quer que seja, não esteja mentindo por mal. Ele talvez tenha pensado que ele estava corrigindo a história, fazendo ela se aproximar mais da história original. De fato, muitos cristãos tentaram fazer isso de diversas formas, antigamente não existia preocupação com a objetividade dos relatos históricos. De qualquer forma, tanto o relato deste quanto dos outros evangelistas devem ser analisados com ceticismo. Para podermos obter um retrato preciso da história por trás do evangelho, é preciso filtrar as adulterações.

E as mentiras de Lucas não param por aqui...


< Parte 2 Parte 4 >

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Em busca do Jesus histórico 2: Jesus existiu?


Jesus Cristo realmente existiu? Não, ao contrário do que muito se pensa, a resposta dessa pergunta não é óbvia. Muitos cristãos, com sua fé e cultura, nunca se permitiram fazê-la, o que é desapontador: se não fazem essa pergunta, como podem sequer conhecer este homem? Muitos ateus, seja por falta de curiosidade ou por uma atitude fundamentalista antirreligiosa, apontam para a falta de relatos de testemunhas oculares e de historiadores da época e, colocando a carroça na frente dos cavalos, condenam-no como um mito. Vamos tirar essa história a limpo. Jesus provavelmente existiu e há boas evidências para sustentar essa afirmação.

Após uma análise crítica dos evangelhos, parece-nos natural afirmar que é difícil dizer até que ponto os evangelhos estão falando a verdade, ou sequer se houve um homem que tenha sido inspiração para todos estes livros. Afinal de contas, existiram muitos mitos na antiguidade a respeito de deuses encarnados que a grande maioria dos historiadores sérios não diriam, de forma alguma, que tenham sido baseados na vida de algum homem. Pode ter sido um grande mal entendido: alguém escreveu uma história fictícia, inventada, e outros começam a identificá-la como verdadeira. Enfim, existem várias posições defensáveis do ponto de vista histórico. Mas, ainda assim, nenhuma outra teoria parece explicar melhor as evidências do que afirmar que, de fato, existiu um galileu no século I de nome Jesus e que morreu condenado por Pôncio Pilatos.

Analisemos as evidências. Temos vários manuscritos que foram compostos nos séculos I e II e que mencionam ou relatam histórias de um indivíduo chamado Jesus. Existem vários pontos em comum. Um deles é que este indivíduo foi crucificado e outro é que estes textos estão considerando-o como o messias. Seria este o retrato natural de um messias para um judeu do século I? A resposta é não.

A ideia de messias que se tinha na época de Cristo é de um guerreiro que lidere uma luta armada e livre o povo de Israel das mãos dos romanos. Mas este messias que foi humilhado, cuspido e que morreu numa cruz. Alguém poderia afirmar que o antigo testamento previu um messias que sofresse, mas basta uma leitura destas “previsões” para perceber que elas não estão falando do messias. Alguém poderia dizer que trata-se de uma “inspiração divina”, mas esta “inspiração” (ainda que suponhamos que ela seja real) só foi notada depois da história ter se espalhado.

Além disso, de acordo com a história, ele teria sido batizado por João Batista. Batizado? Mas por que um messias seria batizado? Não é mais natural que um messias idealizado como um indivíduo perfeito não precisasse ser batizado? Aliás, é possível ver muito bem que os primeiros cristãos não se sentiam muito confortáveis com a ideia de um Jesus batizado e davam desculpas por isso ter acontecido.

João, porém, tentou impedi-lo, dizendo: “Eu preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?”
Mateus 3:14

Isso sem contar toda a reverência que ele faz a Jesus em todos os evangelhos.

Este messias também era galileu, mas as profecias diziam que ele seria de Belém, na Judeia! Enfim, quanto mais se investiga, mais parece que a história foi adaptada para cumprir as profecias do antigo testamento do que uma história que foi inventada com o propósito de cumpri-las.

Bem, por outro lado, muitos ateus vão virar-se e apontar para a falta de relatos da época de Jesus. Afinal de contas, o evangelho mais antigo conhecido, o “de Marcos”, data de aproximadamente 70 d.C. As cartas de Paulo foram compostas a partir de 50 d.C. Onde estão os relatos contemporâneos, de aproximadamente 30 ou 40 d.C.? E os historiadores que poderiam se interessar por ele e não se interessaram?

Primeiro, deixemos bem claro uma coisa. Estamos falando de um país insignificante (do ponto de vista político ou econômico), cujo povo vivia na área rural. Quantos daquela época sabiam ler e escrever? Isso era raro na antiguidade. E seria esperado que algo que fosse escrito na época sobrevivesse até os dias de hoje? De forma nenhuma! Ao menos não os originais. Quando se fala de manuscritos antigos, não existem manuscritos originais, e isto vale não só para os manuscritos da bíblia como também para qualquer outro, de qualquer época antiga. O que resta nos dias de hoje são cópias de cópias de cópias... feitas séculos depois. É exigir demais querer um relato ao vivo dos passeios de Jesus pela Galileia. Daqui a pouco também vão querer vídeos com as pregações dele.

Segundo, Jesus não era o único da época dele que se dizia profeta. Um deles, chamado Athronges, que se denominava “rei dos judeus”, conseguiu atrair um número de seguidores o suficiente para combater tropas romanas por talvez até dois anos. E ele foi derrotado em 4 a.C. Um profeta Samaritano anônimo atraiu uma “grande multidão” para a montanha sagrada de Gerizim onde, segundo ele, ele faria uma “revelação mística” aos judeus, e também teve que ser combatido por tropas romanas em 36 d.C., e eram tantos que enviaram soldados e cavalaria romana para contê-los. Entre 44 e 46 d.C., um indivíduo, chamado Theudas, prometeu a seus discípulos que partiria o rio Jordão ao meio, e, de novo, foi contido por tropas romanas, incluindo cavalaria. Teve outro profeta judeu, este vindo do Egito que, por volta do ano 66 d.C., conseguiu atrair 30 mil homens até Jerusalém! Incrível! 30 mil homens! Ele dizia que os muros da cidade iam cair milagrosamente para que eles pudessem tomar a cidade. Tropas romanas também tiveram que contê-lo.

E quais historiadores relatam estes profetas? Muitos, você deve imaginar? Não, apenas um historiador relata brevemente estes indivíduos, Flávio Josefo, no final do século I. Se um indivíduo que conseguiu atrair 30 mil homens até a cidade de Jerusalém não chamou atenção o suficiente para que mais de um historiador da época o entrevistasse, por que isso aconteceria com um nazareno que nem sequer teria se envolvido em conflitos violentos e que entrou em Jerusalém montado num jumento? Pelos relatos dos evangelhos, Jesus não parece ter conseguido reunir mais de 10 mil homens em nenhuma ocasião. Ainda que ele tivesse atraído 50 mil homens para si, os historiadores não dariam a mínima. O indivíduo notável que conseguiu levar 30 mil homens nem sequer foi nomeado pela história.

Mas então por que o historiador Josefo não dedicou algumas linhas do seu documento, Antiguidades Judaicas, para falar de Jesus? Bem, o fato é que ele citou Jesus duas vezes (versão em português), além de ter citado João Batista. Na primeira, ele relata brevemente o apedrejamento de “Tiago, irmão de Jesus, que era chamado Cristo”. Às vezes, este relato é contestado pois alguns manuscritos (que, lembre-se, são cópias de cópias de cópias...) não trazem escrito “que era chamado Cristo”, levando a entender que este trecho foi adicionado posteriormente. Acontece que é mais provável que ele tenha sido retirado, visto a tendência do cristianismo da Idade Média de achar que chamar alguém de irmão de Cristo era heresia. Além disso, o cristão Origen (184–253) cita este relato de Josefo com o trecho “que era chamado Cristo”, o que dá mais sustentação à ideia de que este fazia parte da versão original.

O segundo relato, o chamado Testimonium Flavianum, é particularmente suspeito porque é praticamente uma profissão de fé cristã e Josefo não era cristão.

Havia neste tempo Jesus, um homem sábio [, se é lícito chamá-lo de homem, porque ele foi o autor de coisas admiráveis, um professor tal que fazia os homens receberem a verdade com prazer]. Ele fez seguidores tanto entre os judeus como entre os gentios.[Ele era o Cristo.] E quando Pilatos, seguindo a sugestão dos principais entre nós, condenou-o à cruz, os que o amaram no princípio não o esqueceram;[ porque ele apareceu a eles vivo novamente no terceiro dia; como os divinos profetas tinham previsto estas e milhares de outras coisas maravilhosas a respeito dele]. E a tribo dos cristãos, assim chamados por causa dele, não está extinta até hoje.
Citação da Wikipédia

Entretanto, se considerarmos que as passagens em negrito foram interpolações (isto é, adições posteriores ou alterações do texto), o texto restante tem as mesmas características de linguagem que o restante do livro, então é bastante plausível que Josefo tenha escrito este relato ao menos em parte. Esta ideia é sustentada por dois manuscritos (na verdade três, mas um deles, o árabe, é um pouco duvidoso) onde, em vez de estar escrito “Ele era o Cristo”, está escrito “Ele era tido com sendo o Cristo”. Outra evidência a favor disso é que o antigo teólogo Origen afirmou que Josefo não acreditava que Jesus era o messias.

O trecho “seguindo a sugestão dos principais entre nós” também é omitido nestes dois manuscritos. Esta exoneração de culpa de Pilatos é encontrada nos evangelhos, o que justifica um cristão, ao fazer uma cópia do relato, querer acrescentá-la. Isso também da sustentação à ideia que Pilatos não exitou em condená-lo, mas que isto foi uma construção sobre a história verdadeira, e também sustenta a teoria de veracidade parcial do texto.

A última suspeita sobre este relato é que ele parece quebrar o texto, pois é uma adição posterior. Oras, mas adições assim se encontram em várias partes do livro de Josefo. Isto porque este era seu estilo de escrever: escrevia vários relatos e depois ia inserindo outras partes entre os parágrafos.

É perfeitamente possível, do ponto de vista histórico, sustentar a ideia de que Jesus não existiu, mas não é tão simples quanto muitos pensam que é e, ainda assim, a maioria dos estudiosos do novo testamento não suportam essa ideia. E não é por serem tendenciosos: muitos deles não são cristãos, e mesmo os historiadores cristãos do novo testamento fariam outros cristãos terem um ataque cardíaco se eles subissem no altar de uma igreja para explicar quem Jesus foi e o que ele fez. De todas as vítimas da falácia do espantalho, o Jesus histórico é provavelmente a maior delas.

A “falta de evidências” da vida de Jesus não é nada anormal em termos de história da antiguidade. Isso é o esperado. Além disso, de nada vale tentar apagar Jesus Cristo da História. Em vez disso, vale mais a pena tentar descobrir quem ele realmente foi e não confiarmos simplesmente no que dizem que ele foi. Não devemos tentar alterar a verdade, deixem que espalhem as mentiras aqueles que têm medo da verdade. Em vez disso, procuremos a verdade e assim, como disse um antigo galileu, a verdade nos libertará.


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quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Em busca do Jesus histórico 1: O sepulcro vazio


Galileia, século I. Ouvem-se muitos boatos que um Galileu chamado Jesus teria ressuscitado da sua tumba. Como é que foi? Eu convido-o, caro leitor, a fazermos um julgamento e você será o juiz. Temos quatro testemunhas: Marcos (16), Mateus (28), Lucas (24) e João (20-21). Vejamos o que eles têm a dizer.

Quem encontrou túmulo vazio? Marcos diz que foram Maria Madalena, Maria, a mãe de Tiago, e Salomé. Mateus desmente, diz que foram apenas as duas Marias. Lucas fala que Mateus está certo, mas que Joana também estava lá.

– Não, diz João, quem estava lá era apenas Maria Madalena, nas duas vezes.
– Duas vezes? Como assim duas vezes, João?
– É, claro, duas vezes, ela foi a primeira vez, viu que o sepulcro estava aberto e voltou correndo avisar Pedro e João que o corpo havia sido retirado. Eles foram correndo ao túmulo e viram que Jesus não estava lá. E depois Madalena foi mais uma vez.
– Não, diz Lucas, os dois anjos do lado de dentro contaram para Maria Madalena e as outras duas mulheres que Jesus havia ressuscitado, só depois é que elas contaram para os apóstolos e Pedro correu para o túmulo. Então não tinha como elas terem dito que “o corpo foi retirado”, elas já sabiam que ele tinha ressuscitado. E só Pedro voltou correndo, João não foi, não.

Marcos e Mateus se entreolham. Que história é essa de Pedro ir para o túmulo? Não fiquei sabendo de nada, não. Ficar sabendo? Por acaso alguém viu alguma dessas coisas acontecer?

Não, ninguém viu nada e eles não são quem você pensa que eles são. Eles ouviram a história por aí e estão contando. João não é João, o apóstolo. Ele provavelmente nem se chama João e nem sequer conheceu Jesus pessoalmente. Aliás, o mesmo se diz de Marcos e Mateus. Lucas? Bem, talvez seja ele mesmo, mas Lucas também não foi discípulo de Jesus e não é historiador, como muitos dizem por aí. Marcos nem sequer é judeu, caiu de paraquedas no meio da confusão.

Marcos toma a palavra:
– Esperem pouco, vocês falaram em dois anjos? Que dois anjos? Só fiquei sabendo que tinha um jovem dentro do túmulo. Talvez ele fosse anjo, mas...
– Dentro do túmulo? De forma nenhuma, diz Mateus. Era só um anjo, um anjo especial, ele desceu dos céus, houve um terremoto e os guardas do lado de fora que guardavam o túmulo desmaiaram.

Guardas? Que guardas? Os outros três se entreolharam.
– E então, continuou, esse anjo ficou sentado na pedra que ele rolou da entrada do túmulo, presumivelmente no lado de fora. Não tinha como Maria Madalena ir lá e voltar correndo sem ter visto o anjo sentado na pedra.
– Não, responde Marcos, o anjo estava sentado do lado de dentro.
– Não, olha, nessa eu estou com o Lucas, diz João. Haviam dois anjos, eles estavam do lado de dentro, sentados no lugar onde Jesus tinha sido deixado, quando...
– Sentados? Estranha Lucas. Que sentados que nada! Os dois anjos se postaram diante delas, eles estavam de pé!
– Não, João retruca, eles estavam sentados quando Madalena se inclinou na entrada, mas não deu tempo deles falarem nada, porque apareceu Jesus. E assim que Madalena soube que ele estava vivo.

Não, não, não, todos eles discordam de João, os anjos já haviam dito que Jesus ressuscitou antes de qualquer aparição dele. E esta se deu bem longe do túmulo. Vamos lá, vamos tomar um pouco de fôlego, quem sabe um cafezinho, que tal? Esqueçamos o túmulo e tentemos esclarecer como foi a tal aparição. Afinal, é o mais importante, não é?

Lucas começa a narrar:
– Aparição? Bem, estavam dois discípulos indo em direção a Emaús, um povoado próximo a Jerusalém, e Jesus começou a andar junto com eles. Eles nem perceberam, começaram a conversar e tudo mais, e, quando chegaram, convidaram Jesus para ficar com eles. Jesus partiu o pão, aí eles se tocaram, mas ele desapareceu, assim, puf, do nada! Nossa, ele está vivo, ele está vivo! Mais do que depressa, eles se levantaram e voltaram para Jerusalém. Os apóstolos estavam em Jerusalém, mas eles não acreditaram nos outros dois, até que Jesus apareceu lá e começou a falar e...

– Jerusalém? Pergunta Mateus.
– Sim, Jerusalém. Não foi lá que Jesus foi crucificado?
– Sim, mas os onze apóstolos foram para a Galileia quando as mulheres contaram a eles que elas viram Jesus em pessoa. Jesus tinha pedido para elas avisarem aos apóstolos para irem à Galileia.
– Sim, foi na Galileia, responde Marcos, mas foi o jovem de dentro do túmulo que havia dito para elas e para dizer aos apóstolos que Jesus os esperava na Galileia. Mas elas ficaram com medo e não contaram a ninguém. Ah, não, espere aí, de repente, não sei por que, mudei de ideia. Primeiro, Jesus apareceu a Madalena, daí Madalena anunciou aos discípulos. Depois Jesus apareceu a outros dois deles e, por último, aos onze apóstolos, criticando a falta de fé deles e...
– Onze? Interrompe João. Não, da primeira vez eram só dez, Tomé, aquele incrédulo, não estava com eles. Ele veio depois e não acreditou que Jesus tinha ressuscitado e...
– Ah, João, de novo você com essa história de “duas vezes”? E não sei nada a respeito de Tomé ser incrédulo, de onde você tirou isso? Maria foi ao túmulo duas vezes, e agora Jesus também apareceu duas vezes aos apóstolos? Como assim?
– Duas? Não, não foram só duas, foram três. Teve uma vez que eles estavam pescando no mar de Tiberíades, mas não tinha peixe, e...
– Ahá! Tiberíades! Não falei pra vocês que foi na Galileia?
– Ah, não, mas isso foi só da terceira vez.
– E das outras duas vezes?

Os olhares atentos e fixos voltaram-se para João.
– Eu não sei.

Merda!

Certo, certo, vamos tentar uma pergunta simples. Ao menos assim talvez eles concordem em alguma coisa. Ao menos todo mundo concorda que pelo menos Maria Madalena foi ao túmulo, não é? A que horas foi isso?
– Ao nascer do sol.
– Ao raiar do dia.
– Eu só sei que foi muito cedo.
Eles sorriram. Pela primeira vez parece que concordavam em alguma coisa.

– Não! Foi de madrugada!

João, seu maldito estraga prazeres!


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domingo, 2 de outubro de 2011

Ceticismo não é descrença


Diz o descrente: “Não acredito em nada do que dizem por aí. Sou um cético, portanto.” No conceito popular, ceticismo significa duvidar de tudo e é, por consequência, caracterizado como a negação completa de qualquer afirmação feita sem que seja comprovada de forma absoluta. Entretanto, se alguém coloca tanta certeza na descrença, não pode ser chamado de cético. Afinal de contas, ceticismo é duvidar de qualquer coisa, inclusiva da própria dúvida.

Deve ser um grande empecilho nunca ter convicções acerca do que se acredita, não é mesmo? Sim, e isto seria um problema para os céticos se dúvida impedisse por completo a existência da convicção. Em vez disso, ceticismo não é duvidar por duvidar, mas sim a capacidade de duvidar ou de dar consideração a qualquer hipótese que se mostre digna da dúvida. E isto, é claro, é o oposto de descrença total. Mas como pode ceticismo ser, ao mesmo tempo, o oposto de descrença total e de credulidade? Acontece que descrença e credulidade não são opostos, mas estão relacionados, pois o crédulo nada mais faz do que desacreditar de forma absoluta e irredutível em qualquer coisa que vá contra o conjunto de dogmas invioláveis por ele instituídos.

Enquanto muitos caracterizam o cético como aquele cientista vilão da tela do cinema que é incapaz de demonstrar qualquer característica humana como esperança ou compaixão, sendo meramente guiado pela “razão”, outros, por incrível que pareça, gostam de pintar o cético como um tolo facilmente manipulável.

Pensa o crédulo em seu coração, “Este indivíduo afirma que é capaz de levar em consideração qualquer ponto de vista que lhe seja apresentado, então vou apresentá-lo o meu. Pedirei a ele que faça cambalhotas, meditações, rezas e rituais dizendo que, se ele assim fizer, ele me entenderá e verá que eu estou certo. Se ele disser que eu estou errado, acusá-lo-ei de não ser um cético de verdade. Se ele recusar-se a fazer o que eu peço, acusá-lo-ei de não seguir seu próprio princípio de vida. Se ele fizer o que eu pedi e não ver o que eu acredito que ele verá, direi que ele não fez direito, ou que não fez por tempo o suficiente. E assim, não ficarei satisfeito até ele dizer que eu estou absolutamente certo.”

E assim, o sentido da palavra ceticismo fica tão completamente descaracterizado que espera-se que o cético faça exatamente o que um crédulo faria! Afinal de contas, não é o crédulo que se permitiria acreditar em um palavreado qualquer? Não é o ingênuo que faz qualquer coisa que lhe peçam? Não é o tolo que continua a realizar as vontades de outros até que estes consigam realmente convencê-lo da visão de mundo destes?

Mas isso é o oposto de ceticismo!

Um cético que seja racional e maduro o bastante não cai num jogo de palavras, mas esperara que o proponente da nova forma de pensar mostre que esta é realmente digna de investigação. Um crédulo que se mostra irresoluto frente a sua própria opinião não merece uma confiança irrestrita de qualquer pessoa, e o cético não tem obrigação nenhuma de abandonar a sua própria convicção para correr atrás de um arco-íris. Pelo contrário, o verdadeiro cético não coloca sua própria liberdade em algo que não se mostra mais do que uma utopia, ainda que investigue com curiosidade as características desta utopia, tal qual um historiador que demonstra uma curiosidade incomum por mitologia grega.

Se há dois pontos de vista para uma mesma questão, então há dois pontos a serem ouvidos. Seria injusto se um juiz decidisse ouvir apenas a procuradoria, ainda que o promotor apresentasse ao juiz montanhas de provas, argumentos e testemunhas de forma que fique impossível imaginar uma situação na qual o réu seja inocente ou que ele mereça menos que uma pena de morte. Da mesma forma, um verdadeiro cético não deve formar sua opinião final ao ouvir um lado da história, ainda que este seja o próprio Deus, sem antes ouvir o que seu oponente tem a dizer, ainda que este seja o diabo!

Não acredite em nada, não importa onde você o leu ou quem o disse, nem mesmo se eu o disse, a menos que isso concorde com sua própria razão e seu próprio bom senso.

 
Se fé significa não ter medo da verdade, ter confiança e maduridade o bastante para se comportar como um adulto em discussões que podem afetar as suas crenças sem ter que, por causa isso, tratar o ponto de vista alheio como uma ameaça ou uma ofensa, então o cético não é aquele que não tem fé. Muito pelo contrário: cético é aquele que de fato tem fé.
 
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