sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Em busca do Jesus histórico 4: E (não é assim que) nasce o messias

Todos conhecem a história tradicional: a gruta, a manjedoura, os animais, os três reis magos, os anjos, os pastores. Atrelado ao nascimento do Cristo está também o nascimento de João Batista, seu precursor, fruto de uma a gravidez miraculosa. Seria essa realmente a história que a bíblia conta? E quanto desta narrativa é confiável?
Estou utilizando, nos meus estudos, A Bíblia de Jerusalém, uma bíblia (católica) de estudos da editora Paulus. Uma referência utilizada é esta aula sobre o evangelho de Lucas ministrada na Universidade de Yale.


Evangelho de Mateus


Maria achou-se “grávida pelo Espírito Santo”. José decidiu repudiá-la, mas recebeu a visita do anjo do Senhor em sonho e aceitou ser o pai da criança.

Depois que Jesus nasceu em Belém da Judeia, nos dias do rei Herodes, magos vindos do Oriente chegaram a Jerusalém e perguntaram: “Onde está o recém-nascido rei dos judeus? Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo”.
Mateus 2:1-2

O primeiro detalhe a se notar é que não há nenhuma explicação do motivo pelo qual José e Maria encontram-se em Belém. Presume-se que eles moravam lá. E os magos não são ditos reis. Na verdade, a palavra grega utilizada, magos, designa membros da casta de sacerdotes do zoroastrismo, que tinham a reputação de serem astrólogos.
Os magos conversam com Herodes e dizem que o messias deve nascer em Belém, e o rei pede a eles que, quando voltassem, informassem a ele onde o menino se encontrava para poder homenageá-lo. Os magos continuaram o seu caminho e a estrela parou sobre onde o menino estava. Como seria possível? Uma boa teoria é que descrição da estrela de Belém assemelha-se às características do aparecimento do cometa Haley em 66 d.C.: do ponto de vista de alguém de Belém, ele apareceu no leste e foi indo em direção a oeste até ficar aparentemente parada sobre Belém ou alguma cidade próxima. Nenhum outro cometa teria exibido essas características próximo ao nascimento de Jesus. Aparentemente o evangelista presenciou esta estrela e decidiu usá-la na sua história.

Toda a ideia de um nascimento anunciado por uma estrela e que recebe visita de pessoas importantes não é original de Mateus, esta é uma receita antiga que teria ocorrido, de acordo com relatos, em nascimentos de semideuses ou deuses da antiguidade. Por exemplo, a história elaborada por Mateus é bem parecida com a história a respeito do nascimento do imperador Augusto (63 d.C.) e pode ter tomado esta como base.

Ao entrarem na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o adoraram. Então abriram os seus tesouros e lhe deram presentes: ouro, incenso e mirra.
Mateus 2:11

Casa? Não era uma caverna e Jesus não estava numa manjedoura? Não, a natividade na caverna vem do Evangelho da Infância de Tiago. E não há nenhuma menção à manjedoura em Mateus. E onde está escrito que os reis magos eram três? E onde está o nome tradicional deles, Melchior, Baltasar e Gaspar? Estes nomes não se encontram na bíblia, mas apenas num manuscrito escrito em Alexandria por volta do ano 500 d.C. denominado Excerpta Latina Barbari.

Os magos voltaram por outro caminho para não dizer a Herodes onde estava o menino e José, avisado em sonho pelo anjo, partiu para o Egito.

Quando Herodes percebeu que havia sido enganado pelos magos, ficou furioso e ordenou que matassem todos os meninos de dois anos para baixo, em Belém e nas proximidades, de acordo com a informação que havia obtido dos magos.
Mateus 2:16

Meninos de dois anos para baixo? Então já fazia uns dois anos que o menino havia nascido até a visita dos magos que se deu em Belém. E o anjo novamente apareceu em sonho a José para que ele voltasse para a Judeia.

Mas, ao ouvir que Arquelau estava reinando na Judeia em lugar de seu pai Herodes, [José] teve medo de ir para lá. Tendo sido avisado em sonho, retirou-se para a região da Galileia e foi viver numa cidade chamada Nazaré. Assim cumpriu-se o que fora dito pelos profetas: “Ele será chamado Nazareno”.
Mateus 2, 22-23

Está claro pelos versículos acima que os pais do nazareno não moravam em Nazaré, mas em Belém, e só depois deles terem voltado do refúgio no Egito é que eles foram morar em Nazaré. E aqui percebemos mais um desvio na famosa história.

Perceba que o massacre dos inocentes e a fuga para o Egito soa muito como a história de Moisés, onde o faraó mandou matar os recém-nascidos e Moisés foi acolhido pela filha do faraó, uma egípcia (Êxodo 1:15-22; 2:1-10).

Alguém poderia perguntar: em que parte do antigo testamento está escrito “Ele será chamado Nazareno”? Em lugar nenhum. O que mais se aproxima deste texto é Juízes 13,5, que diz “o menino será nazireu”, o que quer dizer consagrado. Neste caso, o menino é Sansão.

Mas onde estão os anjos? E os pastores? E o recenseamento do Império Romano? A visita de Maria a Isabel? As orações, o Magnificat e o Benedictus? Mateus não conta nada disso. Quem nos conta isso é Lucas.


Evangelho de Lucas


Tudo começa no nascimento de João Batista.

Abraão e Sara já eram velhos, de idade bem avançada, e Sara já tinha passado da idade de ter filhos.
Gênesis 18:11

Opa! Desculpem-me, abri a bíblia na página errada.

Certo homem de Zorá, chamado Manoá, do clã da tribo de Dã, tinha mulher estéril. Certo dia o anjo do Senhor apareceu a ela e lhe disse: “Você é estéril, não tem filhos, mas engravidará e dará à luz um filho. Todavia, tenha cuidado, não beba vinho nem outra bebida fermentada, e não coma nada impuro; e não se passará navalha na cabeça do filho que você vai ter, porque o menino será nazireu, consagrado a Deus desde o nascimento; ele iniciará a libertação de Israel das mãos dos filisteus”.
Juízes 13:2-5

De novo, abri a bíblia na página errada. Ah, agora sim:

No tempo de Herodes, rei da Judeia, havia um sacerdote chamado Zacarias, que pertencia ao grupo sacerdotal de Abias; Isabel, sua mulher, também era descendente de Arão. Mas eles não tinham filhos, porque Isabel era estéril e ambos eram de idade avançada.
Então um anjo do Senhor apareceu a Zacarias, à direita do altar do incenso. O anjo lhe disse: “Não tenha medo, Zacarias; sua oração foi ouvida. Isabel, sua mulher, lhe dará um filho, e você lhe dará o nome de João. Ele nunca tomará vinho nem bebida fermentada, e será cheio do Espírito Santo desde antes do seu nascimento.”
Lucas 1:5,7,11,13,15b

Compare também com este trecho:

Diga o seguinte aos israelitas: Se um homem ou uma mulher fizer um voto especial, um voto de separação para o Senhor como nazireu, terá que se abster de vinho e de outras bebidas fermentadas.
Números 6:2-3a

A mesma temática encontra-se também em 1 Samuel 1. Está claro que a história de Lucas a respeito de João Batista foi adaptada das escrituras. E veja também que, para Lucas, este é o nazireu. Também são encontrados paralelos no antigo testamento para os versículos 16 a 25.
Muitos conhecem o que o anjo Gabriel veio anunciar a Maria:

O anjo, aproximando-se dela, disse: “Alegre-se, agraciada! O Senhor está com você!”
Lucas 1:28

Detalhe: a tradução correta é “alegre-se” e não “ave”, a palavra em grego que encontra-se nos manuscritos é chairó, “alegre-se, rejubile-se”. Então, nada de reverência do anjo ao estilo romano.

Portanto o Senhor mesmo vos dará um sinal; eis que uma donzela conceberá e dará à luz um filho, e por-lhe-á o nome de Emanuel.
Isaías 7:14

Emanuel? Opa!

Você ficará grávida e dará à luz um filho, e lhe porá o nome de Jesus.
Lucas 1:31

Lucas copiou o trecho trocando o nome!

Há um problema de tradução comum de Isaías 7:14 (este é o motivo pelo qual eu citei uma tradução diferente deste). Os manuscritos em hebraico deste livro trazem a palavra ha'almah que quer dizer mulher jovem, ou donzela. Ao traduzirem o livro de Isaías para o grego, que era a versão utilizada pelo autor do evangelho, esta palavra foi traduzida como parthenos, que quer dizer virgem. E assim, por um erro de tradução, surgiu a ideia de que Maria deveria ser virgem.

Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo. O Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi e ele reinará para sempre sobre o povo de Jacó; seu Reino jamais terá fim.
Lucas 1:32-33

Novamente temos um trecho adaptado do livro de Isaías:

Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, e o governo está sobre os seus ombros. E ele será chamado Maravilhoso Conselheiro, Deus Poderoso, Pai Eterno, Príncipe da Paz. Ele estenderá o seu domínio, e haverá paz sem fim sobre o trono de Davi e sobre o seu reino, estabelecido e mantido com justiça e retidão, desde agora e para sempre.
Isaías 9:6-7a

Maria, então, vai visitar Isabel “numa cidade de Judá” (não está claro qual cidade). Esta exclama algo parecido com o que se encontra no livro de Judite:

Ozias, príncipe do povo de Israel, acrescentou: “Minha filha, tu és bendita do Senhor Deus altíssimo, mais que todas as mulheres da terra. Bendito seja o Senhor, criador do céu e da terra, que te guiou para cortar a cabeça de nosso maior inimigo!”
Judite 13:23-24

Exceto, é claro, pela parte de cortar a cabeça. (Observação: na minha bíblia, este trecho está no versículo 18). E Maria responde:

Meu coração exulta no Senhor;
no Senhor minha força é exaltada.
Minha boca se exalta sobre os meus inimigos,
pois me alegro em tua libertação.
Não há ninguém santo como o Senhor;
não há outro além de ti;
não há rocha alguma como o nosso Deus.
Não falem tão orgulhosamente,
nem saia de suas bocas tal arrogância,
pois o Senhor é Deus sábio;
é ele quem julga os atos dos homens.
O arco dos fortes é quebrado,
mas os fracos são revestidos de força.
Os que tinham muito, agora trabalham por comida,
mas os que estavam famintos, agora não passam fome.
O Senhor é quem dá pobreza e riqueza;
ele humilha e exalta.
Levanta do pó o necessitado
e, do monte de cinzas ergue o pobre;
ele os faz sentarem-se com príncipes
e lhes dá lugar de honra.
Pois os alicerces da terra são do Senhor;
sobre eles estabeleceu o mundo.”
1 Samuel 2:1b-5a,7-8

Ou, melhor dizendo:

Minha alma engrandece ao Senhor
e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador,
pois atentou para a humildade da sua serva.
De agora em diante, todas as gerações
me chamarão bem-aventurada,
pois o Poderoso fez grandes coisas em meu favor;
santo é o seu nome.
A sua misericórdia estende-se aos que o temem,
de geração em geração.
Ele realizou poderosos feitos com seu braço;
dispersou os que são soberbos no mais íntimo do coração.
Derrubou governantes dos seus tronos,
mas exaltou os humildes.
Encheu de coisas boas os famintos,
mas despediu de mãos vazias os ricos.
Ajudou a seu servo Israel,
lembrando-se da sua misericórdia
para com Abraão e seus descendentes para sempre,
como dissera aos nossos antepassados".
Lucas 1:46b-55

Maria voltou para casa, em Nazaré. Não está muito claro se ela ficou para o nascimento do filho de sua prima Isabel. Após o nascimento de João, Zacarias também fez uma oração que provavelmente também foi criada pelo evangelista a partir de alguns salmos e passagens de outros livros.

Houve então um recenseamento “de todo o mundo habitado” (que, em termos da época, quer dizer no Império Romano). E foram então José e Maria para Belém. O menino nasceu, foi envolto em faixas e colocado numa manjedoura, pois não havia um lugar para eles na hospedaria.

Agora vem a visita dos magos, você deve imaginar! Não, Lucas não menciona magos, apenas a visita de anjos e de pastores ao recém-nascido. Os anjos fizeram até um coro louvando a Deus.

Oito dias depois, o menino foi circuncidado. De acordo com a lei judaica (ver Levítico 12:2-4), a mãe deve esperar trinta dias, este é o período de purificação. Lucas narra que, depois deste período, José e Maria foram a Jerusalém para apresentá-lo no templo, oferecendo rolas ou pombos em sacrifício. Lá temos um profeta que faz um pequeno cântico, o Nunc Dimittis, baseada em várias partes do livro Isaías (52,10; 46,13; 42,6; 49,6). Também aparece uma profetisa, de nome Ana, cujas características são bem semelhantes à de Judite (8,4-6).

De Jerusalém, Maria e José vão diretamente para Nazaré, que, conforme a narração, é a cidade onde eles moravam. Enquanto que em Mateus eles receberam a visita dos magos por volta de dois anos após o nascimento do menino, segundo Lucas, eles já voltaram muito antes a Nazaré. E nada de massacre dos inocentes ou de ida ao Egito.

As duas narrativas são muito diferentes e contém contradições entre si. Sendo assim, fica muito difícil confiar nas narrativas do nascimento de Jesus e de João Batista como relatos históricos. Muitos historiadores duvidam que João Batista tenha sequer tido algum parentesco com Jesus.

Mas afinal, no que poderemos confiar então? Como decidiremos quais eventos fazem parte da história e quais foram adicionados a ela? De que maneira separaremos quem foi Jesus Cristo do que as pessoas diziam que ele era?

3 comentários:

  1. Quanto a sua fala sobre a virgindade de Maria, acho que essa concepção não foi em decorrência de um erro de tradução. Na verdade se você tivesse continuado lendo as escrituras, teria visto em Lucas 1:34 a explanação da concepção: "Então, disse Maria ao anjo:Como será isto, pois não tenho relação com homem algum?"

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    1. Você não entendeu a tese que eu apresentei. Houve um erro de tradução do hebraico para o grego. Os autores dos evangelhos leram o texto em grego - pois não eram judeus. Assim, tanto Lucas quanto Mateus cometeram um erro

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    2. Aliás, desculpe-me, não deveria chamar esta tese de minha. É do conhecido historiador Bart D. Ehrman.

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