sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

"Como você pode ter tanta certeza?"

O tribunal está em sessão. Quem está no banco dos réus é Mário, a acusação é assassinato. Várias evidências são apresentadas pela promotoria. Aparentemente, houve uma briga e o assassino deixou na cena do crime algumas gotas de sangue. Um teste de DNA mostra que o sangue pertence ao réu. Havia marcas de pegadas cena do crime que são compatíveis com um par de sapatos sujos de terra - a mesma terra que é lá encontrada - que estavam na casa de Mário. Em sua posse também foram encontradas roupas manchadas com o sangue da vítima. Mário tinha motivos de sobra para querer a vítima a sete palmos abaixo da terra.

Não foram necessários mais do que 15 minutos de discussão para que o juri chegasse à sua decisão: o réu é culpado de todas as acusações. Joana, a namorada de Mário, é claro, não gosta disso. Ela reclama que o julgamento foi injusto, como pode o juri ter tanta certeza nessa decisão? E se houve uma grande conspiração por parte da polícia para incriminar o réu? Oras, o teste de DNA tem uma chance em um trilhão de acusar um falso positivo, e se o réu for simplesmente muito, muito, muito, muito azarado? O crime foi realizado sem que houvesse uma só testemunha, como o juri pode acreditar que Mário estava lá se ninguém viu?

Como ousam eles considerar a teoria de que Mário é culpado como a única "verdade absoluta"?

Pensemos por um segundo. Joana teria alguma razão? Será que existe alguma possibilidade do réu ser, afinal de contas, inocente? Sim, é claro que existe. Agora, é razoável supor que o réu é inocente? Quem é que, diante de tantas evidências, não julgaria o réu como culpado sem nem sequer piscar para pensar? De que vale a pena agarrar-se com tanto fervor numa possibilidade tão remota de ter cometido um erro? Quem é que acredita que é injusto declarar que Mário é culpado em tais circunstâncias?

Joana.

Oras, Joana pode dar tantos murros nessa faca quanto ela quiser, ela pode gritar e espernear à vontade, mas Mário vai pra cadeia e ninguém vai perder o sono por isso.

"Olhe, eu estou disposta a admitir que o seu ponto de vista é possível, mas como você pode dizer que o meu ponto de vista é impossível?" É o que dizem as Joanas por aí, como se não soubessem como defender o seu próprio ponto de vista com argumentos ou evidências e procurassem chegar a um acordo, pedir uma trégua, numa tentativa de não se sentirem prejudicadas. Ou seja, pedem água. Mas em que circunstâncias alguém pede água senão numa briga? Por que tratar uma discussão como se fosse uma disputa?

Oras, numa disputa, um ganha somente às custas da derrota do outro, enquanto que, numa discussão, quem tem o maior lucro não é aquele que defende melhor o seu ponto de vista, pelo contrário, é aquele que aprende mais. Além do mais, se o propósito de uma discussão acerca de um assunto polêmico for chegar à conclusão que os dois lados deste assunto são igualmente possíveis, então, pra começo de conversa, para quê discutir? Não seria mais fácil os indivíduos envolvidos dizerem "todas as possibilidades são igualmente possíveis" e encerrar a discussão?

É claro que discussões não podem sempre ser vistas desta forma, dificilmente a questão é sim ou não, e não é apenas a questão da existência de meios termos, mas de problemas laterais correlacionados ou que influenciam alguma decisão numa situação prática. Há de se tomar cuidado para não prender-se no extremo de uma questão ou de negar-se a ouvir uma opinião contrária.

Por que Joana acredita tanto na inocência do seu amado? Simples: porque ela quer acreditar. É a Primeira Regra do Mago:

As pessoas são estúpidas; dada motivação o suficiente, quase todo mundo acreditará em quase tudo. Porque as pessoas são estúpidas, elas acreditarão numa mentira porque elas querem acreditar que ela é verdade, ou porque elas têm medo de que ela possa ser verdade.

É extremamente importante notar que isso vale para ambos os lados. Muitas vezes, alguém defende um ponto de vista extremo, não porque tem evidências, mas porque quer acreditar naquele extremo, enquanto que aquele que argumenta pelo meio-termo esta apenas tentando ser sensato. Deve-se, portanto, saber distinguir entre uma situação e outra.

Não importa a situação, qualquer ponto de vista, seja extremo, meio-extremo ou meio-termo, é defendido por argumentos e evidências, não por negociação. Dizer que um fato bem estabelecido é falso pela vontade de acreditar na sua falsidade é dar murro em ponta de faca. Tentar negociar e suavizar o ponto de vista alheio sem argumentação ou evidência é acariciar a faca: os cortes são inevitáveis e a faca não perderá o seu fio.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Feliz 2012!

"O fim está próximo!" O único propósito desta frase é causar medo e escândalo. Antes fosse uma ideia nova, antes hoje nós tivéssemos mais razão para acreditar que o mundo chegará ao seu fim do que tiveram os pobres que testemunharam a queda do Império Romano, a Santa Inquisição e as Cruzadas, a Crise de 29, as duas guerras mundiais, a Guerra Fria, entre tantos eventos catastróficos já ocorridos.

Dizem que os sinais dos tempos são claros. Sim, são claros, como sempre foram, o tempo todo as pessoas viam tais sinais na época em que viviam. Crises e guerras acontecem o tempo todo, durante toda a História.

Já sobrevivemos a Deus e ao diabo, acho que não teremos problema em sobreviver a uma previsão (que não foi) feita pelo povo maia acerca do ano que vai chegar.

Deixo aqui duas listas de datas para o fim do mundo ao longo da História: a primeira tem 242 previsões de fim de mundo, a segunda deve ter 183, caso não tenha errado nas contas.

Desejo um próspero ano novo a todos!

Correção no texto "Jesus, Buda e a influência deste no cristianismo"

No texto Em busca do Jesus histórico 6: Jesus, Buda e a influência deste no cristianismo, cometi um erro ao usar o livro "The Gospel of Buddha" como fonte. Fiz uma pequena edição no texto original e adicionei uma nota ao final do texto.

Além disso, gostaria de notificar que a série  "Em busca do Jesus histórico" não chegou ao seu fim! Portanto, não fiquem tristes: em breve, publicarei mais textos a respeito do cristianismo primitivo, das diferentes formas que as pessoas viam o galileu, a visão dos historiadores a respeito de quem foi Jesus, entre tudo o que eu conseguir cavar a respeito do assunto.

Não percam!

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Feliz natal!

Por que temos quatro estações no ano? Esta dúvida assombrou nossos antepassados enquanto eles observavam a ligação entre as estações do ano e o movimento do Sol pelo céu. Em nossa História, curiosos antigos do hemisfério norte observavam a nossa estrela movendo-se do seu ponto mais ao norte vagarosamente em direção ao sul. Os dias, outrora quentes, iam se tornando cada vez mais frios, as folhas amarelavam e despencavam das árvores, os animais iam se recolhendo para suas tocas conforme chegava aquele período do ano em que do céu caíam aqueles cristais brancos e gelados de água.

Eles chegaram à conclusão racional: tudo estava morrendo juntamente com o astro mais importante para a vida na terra.

E então, de repente, no dia 25 de dezembro, o Sol parava de mover-se ao sul. Era o solstício de inverno (hoje em dia, devido a uma alteração no calendário, o solstício ocorre no dia 22). A partir deste dia, o Sol começava novamente a sua ascensão. A morte não o derrotara, a vida não se fora, a esperança renascia.

Era costume deles darem significado aos movimentos dos astro como se o céu fosse o papel sobre o qual os deuses contavam as suas histórias. Astrologia. E assim, o dia 25 de dezembro tornou-se uma data especial. Ao redor do mundo, eram-lhe dados vários significados diferentes. O mais intrigante deles é o nascimento de uma divindade no Império Romano.

Sol Invictus (Sol invencível), o deus Sol, aquele que não pode ser conquistado pela morte.

A celebração Dies Natalis Solis Invicti, ou nascimento de Sol Invictus, foi instituída oficialmente em 274 d.C. e permaneceu apenas até 387 d.C. por uma razão simples: a cristianização do Império Romano. Outra divindade também celebrada nesta data era o deus Saturno, o deus da agricultura, na festa denominada Saturnália, em que os romanos tinham o hábito de trocar presentes. Outro costume comum em várias culturas era o de comer carne, pois esta era a época do abate.

E quem é que não gosta de comer um peru no natal? (Podem fazer piada, mas que é verdade, é).

Apenas para constar: apesar dos boatos, o nascimento do deus Sol egípcio, Horus, não era celebrado nesta data, mas entre outubro e novembro. Há muitos boatos sobre muitas divindades antigas cujo nascimento era celebrado nesta data, mas suspeito que a grande maioria seja fabricação. O nascimento a partir de uma virgem também é erroneamente atribuído a muitas divindades. A associação mais engraçada é que Mithra, divindade do Zoroastrianismo, que foi uma grande religião antiga no mundo iraniano, teria nascido em 25 de dezembro de uma virgem em uma caverna, quando, na verdade, Mithra nasceu a partir da rocha (que dificilmente pode ser classificada como virgem) deixando para trás uma caverna. Bem, ao menos a data de comemoração de aniversário parece ter alguma base.

A origem destes boatos é provavelmente a primeira parte do filme Zeitgeist.

De qualquer maneira, é fato que havia muitas celebrações nas semanas que precedem e seguem o solstício de inverno por vários povos, celebrando várias divindades diferentes. É claro que Roma, ao dominar outros povos, teria um grande trabalho para tirar deles seus costumes, suas tradições. O cristianismo foi provavelmente a maior arma na tentativa de unificar a crença - e, portanto, facilitar o controle.

A escolha de Jesus como sendo o novo deus Sol parecia bastante natural do ponto de vista político. Desta forma, o Império não teria que acabar com costumes e tradições, bastava mudar o nome das divindades cultuadas, estratégia que provou ser um sucesso.

E Jesus ganhou um aniversário.


É por isso que, hoje em dia, a celebração do natal está cercada de simbologia e tradição cujos significados se perderam no tempo com as crenças pagãs que os criaram. A tradição varia de país para país, dependendo dos rituais pagãos que havia nestes antes de sua cristianização e da influência dos rituais de outros países.

O vídeo acima credita a origem do Papai Noel à divindade Bes, do antigo Egito. Acho difícil sustentar tal alegação. Entretanto, é fácil perceber que o Papai Noel, de acordo com sua lenda, tem as características de uma divindade: ele pode demais, sabe demais e está em vários lugares ao mesmo tempo na noite de natal. O velho barbudo, na verdade, trás uma mistura bastante curiosa de características de duas figuras.

Nicolau de Mira, também conhecido como São Nicolau, viveu de 270 a 343 na atual Turquia. Sua mania de entregar presentes às crianças era bastante conhecida, em especial a de deixar moedas em botas. As gravuras deste santo apresentam-no com cabelos e barba brancos e vestes vermelhas, assim como as vestes de qualquer outro bispo da sua época (não, caro leitor, a roupa do Papai Noel não é invenção da Coca-Cola). Entretanto, o dia de sua celebração era 6 de dezembro. Neste dia as crianças eram presenteadas em sua memória. Além disso, imagino que ele não tinha a capacidade de sair voando por aí no dia de natal.

Odin, por outro lado, um deus de bastante importância entre povos germânicos antigos, possuía um cavalo de oito patas chamado Sleipnir, que era capaz de pular grandes distâncias. Durante o festival germânico de solstício de inverno que recebia o nome de Yule, Odin era retratado como conduzindo uma grande festa de caça selvagem pelo céu. As crianças tinham o costume de deixar botas com cenoura, açúcar ou palha ao redor das chaminés para que o cavalo voador de Odin pudesse comer. Como recompensa, Odin deixava presentes ou doces às crianças. Este costume existe ainda hoje nos povos germânicos, enquanto outros povos penduram meias em vez de botas.

Associar divindades de povos pagãos a santos católicos era uma prática comum dos missionários na tentativa de cristianizar estes povos. A Igreja Católica tentou por um tempo acabar com os rituais de origem pagã, como a entrega de presentes, mas não obteve sucesso. É assim que nasce o Papai Noel que nós conhecemos hoje em dia.

Dizem que Natal é uma festa cristã. Alguns chegam a dizer que o Papai Noel deveria ser abolido do natal, pois "não está na bíblia". Pergunto-me se estes também abominam a árvore de natal, que pode estar relacionada à adoração de árvores na antiguidade, enquanto outras vezes elas eram enfeitadas em homenagem aos deuses, como Thor. Será que eles também entregam presentes à maneira de Saturnália? Será que eles também cantam músicas natalinas, à maneira que era feito durante o Yule, num conjunto de rituais eslavos denominado Koleda? E quanto às velas, guirlandas e enfeites de todo o tipo? Como os judeus se atrevem a comemorar o Hanukkah no mesmo dia? E os hindus, que comemoram o Pancha Ganapati entre os dias 21 e 25 de dezembro, como se atrevem? Aliás, se eles têm tanto medo assim dos deuses pagãos e o Natal é uma festa pagã...

Oras, por que raios comemorar o Natal então?

Esta é uma boa pergunta... Por que comemorar o Natal?

Oras, Natal é uma festa que transcendeu eras, culturas e religiões. Diferentes povos sempre procuraram e encontraram diversas razões pela qual comemorar nesta data marcada pelo nosso querido Sol. Oras, talvez não precisemos procurar, talvez não precisemos de razão nenhuma para celebrar.

Não precisamos de um motivo, a festa já é motivo o bastante!

Não é lindo ver as cidades todas enfeitadas, cheias de luz, de velhos barbudos andando pelas ruas, badalando os sinos, as crianças ganhando balas e pedindo presentes de natal? Não é comovente ver crianças mandando cartas endereçadas ao Polo Norte, ao que outros, por compaixão, respondem a este pedido desesperado de ajuda? Não chega a ser quase divino que as pessoas decidem ter mais compaixão só porque aquele dia está marcado no calendário?

Oras, mas é claro que sim, caro leitor! É 25 de dezembro, chegou agora aquele dia mágico, vivo, iluminado. Os deuses se foram, mas, para a nossa alegria, a festa ficou.

Celebremos a humanidade, a esperança de um mundo melhor, o verão... Festejemos a nossa curiosa mania de encontrar uma desculpa esfarrapada para sermos felizes!

Desejo a todos os queridos leitores deste blog um feliz Natal, Hannukah, Pancha Ganapati, Saturnália, Yule, Solstício de Verão... Enfim, tenham um feliz 25 de dezembro!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Ateísmo, uma religião (ou quase)

Existem muitas ideias que se espalham entre os ateus mais convictos, mais religiosos. E digo religiosos por um motivo bem simples: ateísmo, mesmo que tecnicamente não seja uma religião, possui várias das características comuns às religiões. Uma delas é a existência de um conjunto de fanáticos, que se tornam cegos e disseminam ódio e desrespeito às pessoas crentes sob o pretexto de que "crenças não merecem respeito", fãs de vitimização, de fazerem-se de coitados e perseguidos, quando ao mesmo tempo não colocam limites à própria raiva e recusam-se a tentar compreender a cabeça dos religiosos sem pré-julgá-los.

Ateísmo, por definição, é simplesmente ausência de crença em Deus. Por esta definição, uma pessoa qualquer, ou crê em Deus, ou é ateia. Claro, definição é definição, mas será esta a definição usada na prática, socialmente? Comparemos com cristianismo. O dicionário Priberam dá duas possíveis definições para a palavra: "religião de Cristo" ou "doutrina de Cristo". Seria justo dizer que todas as religiões denominadas cristãs podem ser ditas "de Cristo"? Teria o nazareno de milênios atrás fundado cada uma delas? Seria correto dizer que elas seguem a doutrina "de Cristo"? Ou seria mais correto dizer que elas seguem uma doutrina cujo centro e objeto de adoração é uma divindade de nome Jesus Cristo? E digo "uma divindade" porque as religião cristã dão características bem diferentes a Jesus, não se pode dizer "o Jesus Cristo". E fica impossível associar cada uma dessas divindades a um homem que viveu dois mil anos atrás.

Resumindo, a definição de cristianismo está associada ao homem Jesus Cristo, mas o significado prático desta palavra não está. O detalhe é que essa associação é feita na mente das pessoas que se denominam cristãs. Alguém pode não seguir nenhuma religião e denominar-se cristão. Oras, o que define alguém como cristão não é a definição da palavra, mas o quanto as crenças e características deste indivíduo se encaixam naquelas esperadas de um cristão (adorar a Jesus, ir à igreja, professar a fé em Deus...). Aliás, esta é a definição utilizada na prática, não apenas para esta corrente filosófica, mas também para qualquer outra. Pela definição do dicionário é impossível determinar quem é cristão e quem não é.

E por que ateísmo seria diferente?

Oras, ateísmo, na prática, já fugiu à sua definição há tempos. Muitos não professam uma crença em divindade alguma sem se auto-denominarem ateus. Entre os ateus, um adolescente rebelde que diz não acreditar em Deus não é um ateu "de verdade". Muitos deles consideram apenas um ateu "de verdade" aquele que busca informações a respeito das religiões, da crença em um deus, professando abertamente sua ausência de crença, que não acredita em informações aleatórias sem evidências, entre outras coisas. Já ouvi muitos ateus dizerem o quanto é óbvio que marxismo é uma religião. Oras, eu desconheço qualquer definição da palavra religião que classifique marxismo como tal e que não inclua o próprio ateísmo.

Assim, o que, na prática, classifica um ateu não é simplesmente a sua crença ou descrença em divindades. A palavra ateísmo está tão carregada de características que muitas pessoas, apesar de, por definição, serem ateias, negam-se a declararem-se como tais, não pelo medo da repressão ou preconceito, mas sim por causa de um padrão de comportamento que os ateus (sem perceber) esperariam destes indivíduos.

Afirmar a descrença em divindades na sociedade atual não é uma mera constatação de uma ausência de crença, mas um cartão de entrada à ideologia denominada ateísmo. Sendo assim, ateísmo está mais próximo de "crença na negativa" (ainda que não seja crença absoluta) do que de "descrença". Eu não tenho medo de, como ateu, ser possivelmente classificado como pertencente a uma religião; prefiro ser racional a render-me ao medo e fazer um julgamento tendencioso. Religiosidade não é o problema, nem mesmo religiosidade e excesso: não há mal em defender e viver de acordo com princípios comuns a outros. O problema é o fanatismo, é criar um muro entre si mesmo e aqueles que não têm os mesmos princípios.

Dizem que ateísmo não pode ser uma religião porque os ateus pensam diferentemente uns dos outros. Oras, não seria isso verdade em qualquer religião? Quase não há crença que seja comum a todos os cristãos, o mesmo vale para os ateus. Mas existe, sim, uma forma de pensar "média" no cristianismo, ou forma de pensar de maioria, que muitos consideram fator determinante para um indivíduo ser considerado cristão. Por exemplo, nem todos os cristãos afirmam que Jesus Cristo é ao mesmo tempo Deus e filho de Deus, mas a maioria deles não considera cristão alguém que não afirme isso.

Ateísmo também tem uma forma de pensar "média". Infelizmente, assim como no cristianismo, essa forma de pensar média é, em alguns pontos, tendenciosa e crédula. Vale notar que isso não pode ser dito de cada ateu em particular, ainda que seja muito religioso - isso varia muito. Apesar disso, há muitas ideias que se espalham rapidamente e sem questionamento pelos ateus.

Um dos exemplos pode é dado por esta crítica ao Bule Voador. Alguém contou uma anedota no site do Bule envolvendo um óbvio estereótipo de um crente fanático, acrescentando a ela vários elementos que são, no mínimo, duvidosos. Na matéria original, que foi removida e substituída por uma retratação, ainda pode-se ver alguns comentários demonstrando crença total na anedota, que, felizmente, não é universal, mas ainda assim preocupante.

Um conjunto de afirmações absurdas que são facilmente engolidas por ateus são aquelas apresentadas na primeira parte do documentário Zeitgeist, que "mostram" características da vida de Jesus que são comuns a várias outras divindades da antiguidade, afirmando que a vida deste homem teria sido uma invenção-conspiração do Império Romano na tentativa de criar uma religião manipuladora.

Sinto muito, caro leitor, mas, só para dar um exemplo, o número de discípulos de Horus varia muito de história para história, e vi algumas fontes afirmarem que em nenhuma delas este número era doze. Há sim, semelhanças, que fariam a maioria dos cristãos corarem de vergonha (posso citar várias semelhanças com o budismo, por exemplo), mas este documentário força a barra e força a audiência a engolir um sapo. A ideia de que o Império Romano inventou este homem nazareno é simplesmente absurda para qualquer um que tenha a menor preocupação de investigar a História a fundo.

Aliás, como é comum ateus afirmarem, com toda a convicção, que não há evidências que suportem a própria existência do galileu retratado na bíblia, que tantos outros historiadores da época deveriam ter retratado tal profeta, se ele tivesse sido "tão famoso assim", e fazem tais afirmações com todo o orgulho de quem defende uma posição inteligente. E não se importam, é claro, de procurar entender o método histórico ou quais são os argumentos utilizados pelos historiadores em defesa da existência deste homem. Em vez disso, empinam o nariz e dizem que é óbvio e ainda têm a cara-de-pau de taxar de estúpido quem os desafia! Que empinem o nariz, então, para que, ao caminhar, não vejam por onde andam, tropecem e caiam de boca no chão!

Devo dizer que os ateus que se encaixam nesta descrição são poucos, mas os ateus em geral dão confiança a estes poucos da mesma maneira que tantos crentes não fanáticos confiam nos grupos de fanáticos, considerando-os "bons" e enaltecendo o fanatismo religioso. Bem, justo é justo, todos somos crédulos de vez em quando. Felizmente, o ateísmo tem a característica singular de possuir uma grande quantidade de céticos que questionam mesmo as afirmações que lhes são favoráveis.

Diz-se que ateísmo não está associado a dogmas, mas a crença na inexistência divina pode ser, em alguns casos, um dogma. Isso não diz respeito a "ter ou não ter certeza", mas sim ao comportamento com respeito a ela. Muitos ateus afirmam que não podem ter certeza absoluta a respeito da inexistência, mas manifestam raiva perante o questionamento, classificando quem pensa o contrário como estúpido. Deve-se, entretanto, separar convicção de dogma. Uma crença só pode ser classificada como dogma se ela se a sua força não diminui diante de evidências contrárias a ela, mesmo que estas evidências são inconclusivas. Neste caso, as evidências são descartadas por não serem conclusivas e absolutas na refutação da crença, enquanto que, no caso de uma convicção, o indivíduo leva a evidência em consideração, talvez reajustando ou enfraquecendo a posição. Dogmas geralmente causam rejeição ao questionamento, às vezes até raiva.

Note-se que, ao menos em teoria, ateus não deveriam ter dogmas, mas este não é sempre o caso.

Uma crítica comum dos ateus aos cristãos é com respeito à ideia "odiar o pecado e amar o pecador". Amar o pecador, neste caso, é querer que ele fique bem longe, desrespeitá-lo e desprezá-lo, ou seja, usam esta desculpa quando, de fato, odeiam pecado e pecador. Sabendo disso, quando ouvi a frase "pessoas merecem respeito, mas crenças não", senti um calafrio na espinha. E com toda a razão. A situação é totalmente análoga, esta frase é usada por muitos ateus como desculpa para desrespeitar crença e crente, demonstrando uma vergonhosa intolerância à crença e aos crentes por meio de um vale-tudo digno dos religiosos fanáticos que eles criticam. Um religioso sem religião cuja crença mais religiosa - ironia das ironias! - é aversão a qualquer religião.

E vemos aqui a marca registrada do fanatismo religioso: a hipocrisia.

Existe uma linha muito fina entre criticismo e desrespeito e todos estamos sujeitos a cruzá-la em algum ponto. Quando cruzarmos, devemos nos desculpar, pois não há nada que agrave mais as consequências de um desrespeito do que a falta de humildade. Alguém que cruza uma cerca e continua seguindo em frente não perceberá que já cruzou a cercas e ficará cada vez mais longe dela, até que tenha a humildade de olhar para trás. É por isso que eu, sendo ateu, estou criticando o ateísmo e, de certa forma, dando um tiro no meu próprio pé. Prefiro, pois, ficar sem meu pé a deixar isso passar em branco.

Apesar de todas as semelhanças, a grande diferença entre ateísmo e religião é a ausência de rituais e de preceitos morais dogmáticos. Enquanto a religião, em geral, é tradicionalista e conservadora, o ateísmo é, por construção, inovador. Muitos religiosos se prendem ao fato de que há livros ateus, escolhem um destes e chamam-no de "bíblia", mas eles desconsideram que, apesar de o ateísmo atual ter, no mínimo, séculos de existência, os livros mais populares são atuais. Nesta ideologia, não existe saudosismo nem lamentação pelo mundo estar indo para o "mau caminho".

Quanto à credulidade, é impossível dizer que ela não está presente no ateísmo, mas, de qualquer forma, ela não é exaltada sob o pseudônimo de fé, mas criticada, críticas que são muitas vezes bem construídas e dificilmente tratam-se de dizer que "é assim porque é". Mesmo nos casos em que ateus são crédulos e tomam uma posição errônea, não é tão difícil convencê-lo do seu erro mostrando evidências e uma argumentação consistente, coisa que não é tão fácil quando o fanático é religioso.

O ateísmo tem problemas, isto é claro, e não podemos nos cegar a eles, mas também é flexível e bastante unificado, ele não se divide por causa de diferenças de crença, ao mesmo tempo que permite uma liberdade pessoal muito grande com respeito à crença. Eu não posso dizer se ateísmo se classifica como uma religião, mas, mesmo que assim seja, não se trata de uma religião qualquer. Trata-se de uma ideologia revolucionária.
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