terça-feira, 4 de dezembro de 2012

"Deus seja louvado": por trás da polêmica

Foi negado o pedido do Ministério Público Federal de São Paulo de que fosse retirada a frase "Deus seja louvado" das cédulas de real. Muitos acompanharam todo o processo, os compartilhamentos de imagens e links pelo Facebook e, diante de tanto rebuliço, comentaram "Mas é só uma frase!" Sim, por um lado, é só uma frase. Mas, por outro lado, se fosse apenas uma frase, não causaria tanta polêmica, e, portanto, há algo além disso nessa história toda - não dá pra compreendê-la fora do seu devido contexto. O que pretendem os defensores da retirada desta frase?

Aliás... quem são tais defensores?

Os defensores são, em especial, os setores da sociedade que se sentem marginalizados pelo cristianismo. A grande responsável é a recente expansão do ateísmo, não de um ateísmo qualquer, mas de um ateísmo que não quer viver dentro do armário em uma sociedade que repudia sua própria existência.

Em vista da perseguição ideológica aos ateus, - que é bastante forte inclusive no Brasil e pode ser vista de forma icônica no discurso de ódio do Datena, - estes aglutinaram-se pela Internet, em especial ao redor de piadas e argumentações que colocam em xeque as crenças religiosa. Eles passaram a ter consciência da intolerância religiosa existente na sociedade. Como consequência, surgiu a preocupação de que cristianismo deixe de ser a "religião padrão". Daí é que surge a ideia de retirar a palavra "Deus" dos papéis-moeda.

Nem a existência, nem a inexistência da frase "Deus seja louvado" nas cédulas são de grande relevância. A retirada, entretanto, teria um caráter simbólico: tirar o cristianismo de sua posição privilegiada.


Divergências

Entretanto, não concordo com esta reivindicação, muito menos com a forma que está sendo feita a disputa política para sua adoção. Apresenta-se laicismo como um fim (a separação completa entre Igreja e Estado), como um princípio que é válido por si só, não como um meio para atingir um fim, a saber: a liberdade e o respeito à diversidade religiosa. Em outras palavras, dizer simplesmente que o dinheiro é público e que, portanto, não deve fazer referência a nenhuma religião não é argumento válido, tampouco dizer que isso fere a constituição.

Independentemente da legalidade, é necessário verificar se esta medida ajuda a atingir o fim desejado: o respeito à diversidade religiosa. Para isso, se não existe respeito às minorias religiosas, é preciso perguntar: qual a origem deste problema? Seria por acaso uma frase nas cédulas? Crucifixos nos tribunais? Nomes cristãos por todos os lados? Ou seriam todos estes meros sintomas do fato que o cristianismo é visto pelos cristãos como a "religião padrão" de tal forma a tornar invisíveis as outras religiões?

Entretanto, o debate sobre "manter ou retirar a frase" reduz toda a questão a "cristianismo" versus "ausência de cristianismo" - uma falsa dicotomia. Oras, existe, por acaso, maneira mais eficiente de reforçar a ideia que o cristianismo é, de fato, a religião padrão, fazendo com que ela seja a única a se inserir nos debates sobre laicismo? Pretender que o cristianismo deixe de ser o centro das atenções tornando-o mais ainda o centro das atenções?

Qual a visibilidade que esta polêmica dá ao Candomblé, à Umbanda, às religiões indígenas? Ao espiritismo, ao budismo, ao hinduísmo, ao islamismo e ao judaísmo? Parece mesmo que a questão não se trata de diversidade religiosa ou respeito às religiões, mas ausência completa das religiões na esfera pública ou estatal!

Oras, parece-me muito mais adequado fazer a disputa política para que todas as religiões tenham a possibilidade de serem representadas no papel moeda. Isso é bem simples, na verdade: as cédulas poderiam conter, por exemplo, "Viva a diversidade religiosa do Brasil!" Esta, a meu ver, seria uma medida muito mais democrática. É bem mais simples explicar para um cristão que as outras religiões também fazem parte do país e que é dever do Estado representá-las devidamente do que dizer que ele está proibido de manifestar publicamente a sua religião. É muito mais dialogável defender que outras religiões também tiveram papel importante na História do que defender que o cristianismo não teve papel nenhum.

Além, é claro, de ser mais justo.

É preciso, aliás, ir muito além disso. É necessário promover iniciativas de incentivo à manifestação cultural e religiosa popular, em especial das religiões marginais da sociedade. Deve haver ensino religioso nas escolas públicas, mas que não se restrinja ao cristianismo, e sim que torne visível a pluralidade religiosa, não só de hoje, mas também do passado, com o apoio e presença dos grupos religiosos locais.


Sobre laicismo de Estado
Atento, porém, que meu posicionamento [sobre laicismo de Estado] difere da mera divisão entre Estado e Igreja, como se a mesma fosse identificada como Público e Privado, incapacitando o exercício político dos atores religiosos. Não distinguo o homem religioso do homem político. Trata-se de uma falsa polarização que visa apenas a sectarização do cenário político. As convicções morais e ideológicas são as mesmas: ninguém pode defender uma causa no parlamento ou no partido, e não defendê-la da mesma maneira no templo ou na paróquia. E vice-versa.

Eu, portanto, considero que a liberdade religiosa se atinge, não a partir da criação de um muro entre religião e Estado, pelo contrário: são necessárias pontes. É necessário que as diversas religiões e não-religiões tenham a possibilidade de se inserir na sociedade, a tornarem-se visíveis. É preciso garantir que elas permaneçam em diálogo entre si, para que sejam respeitados os interesses comuns acima dos particulares.

As instituições religiosas, estas, sim, devem permanecer longe do Estado, assim como também devem permanecer as empresas e os bancos. Isso porque estas entidades têm excessivo poder político, de forma que a presença delas na política impossibilita a democracia. Entretanto, proibir a participação da religião no Estado significa, na prática, impedir que as pessoas tenham sua opinião democraticamente representada e, portanto, também impossibilita a democracia!

Em outras palavras o Estado deve conter e representar todas as religiões, mas nenhuma Igreja!

[Defendo] a autonomia dos cristãos evangélicos para defender suas escolhas eleitorais. Todo debate no interior da igreja deve ser bem-vindo, o que caminha justamente no contrário das atuais práticas políticas de orientação de voto feita por pastores, bispos e apóstolos em diversas denominações evangélicas do nosso país. O "voto de cajado", [...] típico voto de cabresto no interior das igrejas, difundiu-se como praga, e seu funcionamento se tornou ainda mais complexo e estruturado na medida em que denominações como a Igreja Universal do Reino de Deus passaram a aplicá-la, influenciando a reorganização de práticas políticas em todo campo religioso e político brasileiro.


E assim, as lideranças religiosas abusam da fé do povo para obter poder político. Pelo voto de cajado e pelo poder econômico, as grandes Igrejas garantem a sua capacidade de intervenção política sobre o Estado, praticamente privando seus fiéis de uma opinião política própria, independente. O Estado deve, portanto, garantir a estes fiéis a efetiva participação a que eles têm direito na política.

Para combater essa dura realidade, é preciso lutar para que os religiosos tenham uma espaço para desenvolver uma opinião política própria, ainda que equivocada. Eles devem ter contado com as outras religiões, para compreender a necessidade de um mínimo acordo com respeito ao que é público, comum a todos. Este é o único caminho que torna possível que haja, de fato, respeito à diversidade religiosa no país e para minar a influência do conservadorismo religioso na política.

terça-feira, 31 de julho de 2012

A maldade inevitável da burguesia

As grandes empresas e os grandes bancos são apontados pelos socialistas como a origem dos maiores problemas da sociedade. Eles são controlados pela classe social denominada burguesia. Demonstrarei aqui, de forma lógica e precisa, que a burguesia é tende a tornar-se antiética com o tempo pela própria natureza da natureza competitiva do sistema capitalista.

Que fique claro que, com este texto, eu não pretendo incentivar a qualquer tipo de discriminação contra as pessoas mais ricas, até porque nem todas elas são más, muito menos incentivar qualquer tipo de violência. Em vez disso, quero apenas defender que um sistema que permita que a burguesia tenha um enorme poder político é muito prejudicial à sociedade.

O mercado é bastante conhecido por sua natureza competitiva. Se há competição, então existe a seleção dos indivíduos mais adaptados ao sistema (como acontece na Teoria de Darwin). Em outras palavras, os indivíduos que possuem os meios de produção são os indivíduos mais preparados a lucrar.

Qual a relação entre a adaptação ao sistema e a ética dos sujeitos envolvidos? Considere dois indivíduos: o primeiro é incapaz de trapacear e o segundo não tem peso algum na consciência, de forma que pode ou não trapacear, o que for mais conveniente para ele na ocasião. Qual deles tem maiores chances de sucesso?

A resposta é bastante simples: o segundo. De fato, se eventualmente aparecer uma oportunidade de negócio em que o dono da fábrica precise trapacear para fechá-lo, ou mesmo que ele possa obter um lucro maior trapaceando, então o segundo terá maior sucesso. É claro que, às vezes, trapacear pode ser desvantajoso para a empresa. Neste caso, os indivíduos selecionados serão aqueles que melhor sabem determinar se a trapaça vale a pena em cada situação. O fato é que os indivíduos mais honestos, que não se dispõem a trapacear, ficam para trás.

Não é à toa que as grandes empresas de softwares usam o (ridículo) sistema de patentes dos EUA para oprimir a concorrência, fazem acordos às ocultas com outras empresas, fornecem um péssimo e caro serviço de assistência técnica, mentem para os consumidores que reclamam...

Uma madeireira que não tem impedimentos éticos em extrair madeira de áreas de preservação ambiental terá maior chances de lucro (desde que tenha cuidado de não ser pega pela fiscalização) do que uma madeireira que decida seguir a lei.

Um empresa sem peso na consciência em explorar o trabalho de crianças para obtenção de lucro terá maior sucesso do que outra empresa que não explore crianças e que pague um salário no mínimo razoável pelo trabalho de cada empregado.

Os mais ricos talvez exaltariam a ganância, a perseguição dos próprios interesses, a trapaça, a mentira e até a transgressão da lei em troca do lucro?

O comportamento de um determinado indivíduo é dito ético quando ele se recusa a agir de determinadas maneiras. Por exemplo, quando ele não mata, não trapaceia, não rouba, etc. Ou seja, um indivíduo antiético não é impedido de agir de forma ética em uma determinada situação se isto lhe for vantajoso, mas, por outro lado, um indivíduo ético pode ser impedido de agir de forma antiética e, por isso, perder uma oportunidade de lucro. E, de fato, este impedimento ocorre, como nos exemplos sitados acima.

Assim, segue que o comportamento antiético é uma vantagem evolutiva neste sistema de competição. Portanto, as características que tendem a levar a um comportamento antiético são, aos poucos, selecionadas pelo sistema de competição capitalista. Ou seja, com o tempo, a burguesia (em especial a alta burguesia) tende a se tornar cada vez mais antiética a não ser que haja alguma força externa que os impeça deste tipo de comportamento.

Uma possível força externa seria o convívio em sociedade. Entretanto, sabemos que os mais ricos, em geral, vivem socialmente isolados do resto da população.

Vejamos se o que foi aqui exposto se verifica na realidade. O Iluminismo trouxe várias novas ideias à sociedade que são consideradas éticas (ao menos para os padrões atuais), entre as quais a liberdade e a igualdade. A Revolução Francesa, a primeira revolução burguesa, reproduziu estes ideias. Entretanto, o tempo passou e a burguesia mudou muito. A Revolução Industrial é bastante conhecida pelos grandes problemas sociais que gerou por causa da exploração, contradizendo a liberdade e a igualdade pregada inicialmente, causando a maior crise que ocorrera até então. A reação de então foi finalmente o início de várias restrições à liberdade da burguesia.

Aparentemente, a burguesia tornou-se antiética com o tempo.

Hoje em dia, vemos muitos acordos escusos entre empresários e políticos, mentiras, distorções e manipulações propagadas pela mídia. Vemos muitas formas utilizadas pelos poderosos de burlar as leis para assegurar seus interesses. Mesmo havendo cada vez mais leis na tentativa de evitar a libertinagem do sistema de competição, isso não parece ser o suficiente. Muitas vezes, a força política da classe dominante supera a vontade popular na aprovação de leis, como o Novo Código Florestal.
E as estatísticas mostram que, de fato, existe uma correlação entre riqueza e comportamento antiético.

Oras, se estamos, de fato, vivendo em um sistema faz com que a classe dominante seja cada vez mais antiética, o que poderemos fazer? Seremos forçados a combater politicamente esta tendência, criando cada vez mais leis que controlem as empresas enquanto elas descobrem cada vez mais formas de burlar, manipular e contorná-las nessa guerra de classes sem fim? Não seria possível virar este jogo?

terça-feira, 10 de julho de 2012

Democracia e a Anel

Assembleia Nacional da Anel, 17 de junho, Plenária Final.
Um minuto de silêncio pelos estudantes perseguidos e mortos.

Talvez a etapa mais importante na minha compreensão sobre o que é socialismo foi minha viagem à Assembleia Nacional da Anel. O processo de discussão de assuntos, pautas e propostas era ao mesmo tempo dinâmico, bem organizado e democrático. Mas o mais curioso de tudo é que não havia líderes: havia apenas uma comissão cujo papel era anotar cada decisão tomada e conduzir as discussões e a plenária. Neste caso, quem é que dava a palavra final?

O voto.

Na Plenária Final, que foi, sem dúvida, a parte mais impressionante de todo o evento, as propostas separadas em diversos temas eram mostradas por um projetor e lidas à plateia. "Algum destaque?", perguntava uma das moças sentadas a uma mesa sobre o palanque. Frequentemente alguém levantava a mão e dizia "Destaque!" e a ele ou ela era dada a permissão de explicar o problema à plateia em 30 segundos. Muitas vezes, consistia apenas numa alteração das palavras. Por exemplo, em vários pontos em que lia-se "estudantes", foi sugerido que fosse adicionado "funcionários e professores", para dar um caráter de união à greve, o que é indubitavelmente necessário. Após a alteração, a proposta era colocada em votação:
- Delegados favoráveis à proposta, por favor, ergam seus crachás. Contrários. Abstenções. A proposta foi aprovada por contraste.

Quando o destaque apresentado gerava uma polêmica, ao autor eram dados 2, 3 ou 4 minutos para defender a alteração ou remoção da proposta. O mesmo tempo era dado a um defensor da proposta original e a votação decidia qual delas seria mantida. Tudo acontecia muito rapidamente, quem piscou perdeu algum detalhe.

A votação mais surpreendente foi sobre a principal reivindicação da greve a ser levada ao Comando Nacional de Greve dos Estudantes. Haviam duas propostas, os delegados votaram a favor da primeira. Ao ver a segunda proposta ser negada, sua defensora dirigiu-se à mesa que estava sobre o palanque. Depois a mesa dirigiu-se à plateia:
- Ela está me explicando que, como esta é uma votação muito importante, os observadores devem votar. Observadores favoráveis à proposta, por favor, ergam seus crachás...

Neste momento, meu queixo estava no chão. Em vez de dizerem que isso não era permitido ou de defenderem-se com algum artigo ou parágrafo no estatuto da Anel, permitiram que a votação fosse feita. Não havia burocracia como vi acontecer na CP do prefeito Silvio Félix e (mais de uma vez) no Conselho Universitário da Unicamp. A vontade do povo, de fato, era superior a qualquer regra previamente estabelecida.

Ah! E eu que pensava que sabia o que era democracia!

Afinal, quem é que cria as regras? Não é a própria plenária, o próprio parlamento? Oras, se é o próprio parlamento que as cria, então ele também pode alterá-las sem, para isso, ter que passar pela burocracia por elas criada.

Como não havia nenhuma figura de liderança, todas as divergências eram resolvidas a partir da negociação e do voto dos delegados. As polêmicas muitas vezes eram difíceis de se entender, de forma que era necessário bastante concentração e reflexão - ao menos da minha parte. De fato, como as defesas só se limitavam a, no máximo, 4 minutos, o expoente não tinha a oportunidade de mastigar as informações. Por isso, era necessário que o ouvinte já tivesse conhecimento básico sobre o assunto. E quem não tinha, claro, não custava conversar e discutir brevemente com a pessoa ao lado, o que acontecia o tempo todo, a despeito dos pedidos de silêncio por parte da organização.

As resoluções tomadas por essa assembleia com respeito à greve foram levadas ao Comando Nacional de Greve dos Estudantes e foram aprovadas.

Aprendi muitas coisas com esta experiência. Passei a entender que política se aprende apenas na prática, não na teoria. Não adianta simplesmente estudar ou pesquisar: deve-se aprender a discutir e defender seu próprio ponto de vista. Apenas participando das próprias tomadas de decisão é que se aprende como e por que elas são feitas, quais as pressões políticas envolvidas, os prós e contras de cada opção.

Em segundo lugar, também descobri que tanto a própria forma de funcionamento deste evento como a estrutura política dos sindicatos são fortemente baseadas nas teorias sócio-econômicas marxistas. Em outras palavras, isso é socialismo na prática. Ao contrário do que muitos costumam pensar, socialismo não é simplesmente teórico em quase nada.

Ao contrário do que se pensa, socialismo não significa necessariamente ausência de diferenças sociais, de salários ou remuneração diferenciada. Afinal de contas, numa verdadeira democracia, tudo é discutível. E é isso o que socialismo, de fato, significa: democracia.


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Mais detalhes sobre o evento

Deixo aqui alguns exemplos para que saibam a que nível de detalhes as decisões eram tomadas.

Na sessão de abertura, houve discursos de várias pessoas, incluindo um bombeiro (uma vez que a Anel apoiou a greve de bombeiros e policiais do Rio de Janeiro), vários comandos locais de greve das universidades federais e estudantes de outros países.

Os participantes foram divididos (aleatoriamente ou por livre escolha) em grupos para realizar discussões sobre diversos temas (a Greve das Federais, o Rio+20 e a Cúpula dos Povos, machismo, racismo, homofobia, o Novo Código Florestal, a Usina de Belo Monte...)

As discussões ocorrem da mesma forma que nos sindicatos e no movimento estudantil: quem tivesse algo para expor se inscrevia e os inscritos iam sendo chamados um a um. As falas dos participantes eram limitadas a 3, 4 ou 5 minutos.

No grupo de discussão sobre racismo, um rapaz disse ser contraditório a Anel apoiar a greve de policiais e bombeiros, porque, resumindo, "as instituições militares fazem parte do aparato de repressão de Estado, reprimem os pobres e os negros". Aplaudiram. Em resposta, uma moça argumentou: "Contraditório? Contraditório são os policiais negarem-se a obedecer o Estado e fazer uma greve quando deveriam estar oprimindo a população!" Os aplausos foram mais fortes.

Durante as discussões, as propostas de ação política que eram apresentadas pelos participantes eram anotadas para serem votadas (depois de previamente selecionadas) na Plenária Final.

Numa proposta, se não me engano, sobre reivindicação de aumento de bolsa estudantil, solicitaram que fosse antes reivindicada a alteração de uma lei que impedia este aumento. A alteração foi aprovada.

Quando surgiu a proposta de fazer cartazes e faixas contrárias à UNE nas greves e nos atos, uma moça apresentou um destaque bem simples, que foi fortemente aplaudido: "Gente, não precisa disso." A votação foi contrária à proposta.

Sobre a principal reivindicação da greve. A primeira proposta defendia o destino de 10% do PIB à educação e elaboração de um Plano Nacional de Educação que, de fato, atenda às necessidades do país. A segunda, além dos 10%, reivindicava também a estatização de faculdades privadas, o fim do vestibular e vagas nas universidades para todos os estudantes.

A defensora da primeira proposta explicou que quem escolhe as reivindicações da greve são os grevistas e não a Anel. O papel desta deveria apenas ser dar sustentação a estas reivindicações e não criar reivindicações que estão longe da atual realidade. A defensora da segunda disse que deveria-se pensar também nas necessidades dos estudantes das universidades privadas. A votação, tanto dos delegados quanto dos observadores, foi em favor da primeira.

Outro exemplo do caráter da democracia do evento foi quando alguém defendeu que a Anel deveria mudar sua posição com respeito às greves dos militares. Esta decisão havia sido aprovada pela CSP-Conlutas, à qual a Anel é filiada. A polêmica surgida é se a Anel deveria manter esta posição ou se esta deveria ser colocada sob discussão e votação. Houve, então, as defesas dos dois lados e a votação decidiu que a decisão tomada pela CSP-Conlutas deveria ser mantida.

Ao final de todas as resoluções, a mesa apresentou o órgão executivo que teria o papel de colocá-las em prática. Não havia nenhum destaque a ser apresentado e a votação em favor deste órgão foi unânime. Seus mandatos são revogáveis a qualquer momento.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

"Loucos por ti, Corinthians!"

Não, caro leitor, esse não é mais um texto de mais um torcedor fanático do Corinthians comemorando o tão sofridamente título obtido por este nesta quarta. Não que eu não tenha comemorado ou ficado contente, pelo contrário, mas minha alegria não foi pelo título, mas pelos torcedores. Há muito vejo-os sendo caçoados especialmente por seu time sem estádio, com pouco apoio financeiro e poucos títulos. Isso quando não os chamam de bandidos ou mesmo de hipócritas. Sic.

Sim, a disputa da torcida é mais violenta que a dos próprios times!

Convenhamos, sejamos racionais, o fanatismo por um time de futebol não faz muito sentido. Um esporte faz sentido até o ponto em que é uma diversão, linha que há tempos foi ultrapassada. Isso, claro, sem falar em muitas outras características associadas a este esporte. Mas há uma coisa que faz ainda menos sentido do que tudo isso.

Imagine que você viajou para Gana. Alguns ganenses recém-conhecidos lhe convidam a assistir a um jogo deste país contra a Argélia. Nestas condições, o que lhe parece mais natural: torcer por Gana, por nenhum dos dois times ou pela Argélia? Você comemoraria os gols do adversário com a intenção de deixar os ganenses chateados? Talvez até provocá-los, deixá-los bravos?

E, quando Gana possivelmente ganhasse um torneio africano, você falaria para eles que Gana não tem tantos títulos quanto o time do seu país? Compararia números, vitórias, títulos, para que eles não comemorassem tanto a vitória que obtiveram?

É impressão minha ou somos naturalmente mais amigáveis com as pessoas mais distantes do que com aquelas que nos rodeiam? Não me impressiona que nossos líderes tenham tanta facilidade em dominar-nos, fazer-nos de gato e sapato, se criamos picuinhas até mesmo naquilo que não importa.

E quanto ao prefeito Kassab, que fez a sandice de proibir que a maior torcida do estado comemorasse a primeira vez que seu time obteve a taça da Libertadores na avenida Paulista? E de ainda por cima mandar a polícia para reprimir os desobedientes? Kassab, vá à merda! Infeliz, filho de chocadeira que não suporta ver a felicidade alheia, vá tomar no seu cu!

Fui para um bar assistir ao jogo com os amigos. O jogo não me interessava, mas, ainda assim, torci pelo Corinthians, gritei e pulei quando marcaram os gols. Emocionei-me em ver as aclamações pelo time amado, os gritos e os casos de rouquidão permanente. Ao final, alguns, sem acreditar no que viam, choravam de emoção. Era a comemoração deste bando de loucos. Loucos pelo Curintia.

Ao vê-los, pensei: o que seria deles se o time perdesse? Se tamanha foi a alegria, quão grande não seria a decepção? O que seria deste povo que, mesmo tão sofrido, mesmo com tanta pressão, não abriu mão de sua esperança? Que, mesmo sendo alvo de gozação e até preconceito, negou-se a perder sua identidade? Povo tão forte, mas, ao mesmo tempo, tão frágil!

Não dou a mínima para o Corinthians, mas eu morreria por essa torcida.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Política é uma merda!

Corrupção, acordos escusos, mentiras deslavadas. Esta é a política que nós conhecemos. Um político acusa o outro, a mídia expõe os problemas de vários e o povo trabalhador, cada vez mais perdido, vai perdendo as esperanças e o interesse em política. Desanimado, chamam-no de palhaço por não se informar. Mas quem é o verdadeiro palhaço? Seria o povo, que vive em condições precárias, sem educação para saber o que está acontecendo, quem é honesto e quem não é? Ou seriam os políticos, que aparecem na televisão com um sorriso e um pedido: "Vote em mim, pois eu sou honesto, capacitado e represento as suas vontades"?

É como se dissessem:
- Caro cidadão, cara cidadã, adivinhe se eu digo a verdade! Eu sei, você não me conhece, mas terá que me julgar nestes poucos minutos a partir desta aparência maquiada, deste sorriso falso e deste discurso artificial. Não pode? Como não pode? Você não é vidente?

O que poderíamos esperar: que aquele que mal tem tempo para o lazer abrisse mão de seu descanso para aprender sobre política? Que culpa tem a mãe de família se não tem tempo de pesquisar as propostas de candidato por candidato e buscar entender quais serão os resultados se forem aplicadas? Como ela poderia saber que o jornal ou a revista que lê ou assiste todos os dias tem fortes tendências políticas que são, aliás, contrárias às suas verdadeiras necessidades? Esperaríamos, então, que todo santo habitante de nosso mundo conhecesse o mínimo sobre política e economia antes que pudesse votar "corretamente"?

Mas como isso poderia acontecer se aqueles que a sociedade ergue ao Palácio (que seriam teoricamente responsáveis por fornecer esta educação mínima necessária) não representam seus interesses, mas os interesses da burguesia? Oras, esta teria algum interesse em sua educação política?

Pobre povo que trabalha o dia todo para sustentar, não só a própria família, mas também a essa corja de políticos e burgueses mal-agradecidos! Se o político que, ontem, era do povo, dizia-se revolucionário, hoje aperta a mão dos conhecidamente corruptos em troca de alguns minutos de televisão, que raios de revolução foi essa? Oras, políticos fazendo acordos escusos para serem eleitos, isso já existia aos montes! Onde está a transparência, a honestidade, a verdadeira representatividade?

Cadê a democracia?

E o povo, se já estava perdido, quanto mais agora! Em vez de aproximar o povo da política, dão ainda maiores motivos para que este se afaste e confie ainda menos nos políticos! Se fazem acordos e concessões, se passam a perna no povo às abertas, o que farão quando estiverem no oculto? Se mentem para ele sem a menor vergonha na cara, como podem sequer ousar dizer que o representarão quando estiverem lá em cima, naquele palanque burguês? Ou devo dizer: palanquim?

Como a sociedade confiará em alguém que nem sequer é sincero quando se dirige a ela? Não podem nem mesmo respeitar àquela que os colocam lá em cima? Neste mar de insanidade e hipocrisia, onde estão os políticos que se negam a rebaixar seu próprio nível em troca de votos e a seguir jogando este jogo de cartas marcadas? Quem é que dará um basta nessa discussão sobre quem dentre os políticos é o "menos pior"?

Não são os políticos que são corruptos, muitos deles (acredito eu) têm as melhores intenções do mundo. Mas o sistema todo é corrupto. Raros são aqueles que estão lá em cima sem o apoio financeiro das empresas e dos bancos - e, portanto, representam a estes, não ao povo que os elegeu. A corrupção começa aí: não são as propostas, a capacidade ou o discurso, mas sim o dinheiro que elege quais partidos e quais políticos terão condições financeiras para fazer sua campanha e concorrer às eleições. Por trás de cada político corrupto há um burguês corruptor garantindo a manutenção de seus interesses. Isso não mudará, não pode mudar sem uma verdadeira revolução.

sábado, 2 de junho de 2012

A Marcha das Vadias... Cristãs

Fonte
Uma nova onda de estupros surge em uma cidade qualquer. Desta vez, as vítimas possuem um característica bastante peculiar: são moças cristãs. Há muita discussão acerca do motivo, alguns psicólogos pensam que trata-se de uma certa obsessão por pureza. As vítimas preferidas são aquelas que carregam terços, bíblias, colares e brincos em formato de cruz. E se estiverem rezando, nossa, aí elas estão praticamente implorando para serem atacadas. Entretanto, curiosamente, as cristãs se negam a desfazerem-se de seus costumes, afirmando que ser cristã é seu direito, culpados pelos estupros são os estupradores. Mas a sociedade desta cidade, cuja maioria não é cristã, não pensa exatamente desta forma. Pelo contrário, pensam que, na verdade, as cristãs são... vadias.

Afinal de contas, se elas não querem ser estupradas, então elas deveriam deixar de ir à igreja. Os molestadores ficam à espreita, observando as mulheres que saem de lá, e memorizam seus rostos. Alguns, dizem por aí, até costumam frequentá-las para planejar melhor seus ataques. Sendo assim, se elas vão lá, é porque querem ser atacadas, não pode haver outro motivo. Claro, elas sabem muito bem o risco que estão correndo ao comportar-se desta forma.

Ah, e as freiras, então... Quando elas afirmam que são atacadas, os policiais não movem um só dedo. Quem é que iria acreditar numa freira que diz que foi estuprada? Ah, não, ela provavelmente implorou para que o criminoso continuasse. Ele, coitado, só queria corrigi-la, curá-la da sua freirisse.

Um policial decide fazer um discurso nesta cidade, explicando o que as moças devem fazer para evitar os ataques. Em seu discurso, a melhor dica que ele poderia dar: "Parem de ir à igreja."

As cristãs desta cidade se revoltam. É claro, não se conformam com o comentário teofóbico. Se o problema são os estupradores, por que é que o povo está julgando as mulheres por serem ou não cristãs? Não, o que é isso, temos que protestar contra esta situação calamitosa! Temos que nos unir pelo direito de vestir o que quisermos e de rezar onde bem entendemos. Vamos juntar todas as mulheres que pudermos e protestarmos pelo nosso direito de professarmos a nossa fé.

E assim nasce a Marcha das Vadias... Cristãs.

Lá se foram elas, as cristãs, as freiras, os pastores, os monges e até cantores de música gospel. Levaram faixas, cartazes e crucifixos, todas animadas, cantando, exigindo liberdade de expressão, liberdade de ser. Mas eis que elas realizam o ato mais absurdo possível:

Ajoelham-se no meio da rua e rezam uma Ave Maria.

Ah, não, mas que absurdo!, exclama a cidade, escandalizada. Não bastassem ficar de joelhos, ainda decidem rezar! E tiram fotos! E ainda por cima tinham crianças vendo, ah, não, não pode ser! Mas o que elas esperam com isso? Agora é que vão mesmo ser atacadas! Se elas não têm respeito por si mesmas ao ponto de rezarem no meio da rua, com muito menor razão respeitá-las-ão os estupradores! Estão declarando abertamente (e ainda por cima com orgulho!) aquilo que realmente são: vadias!

Hum... Será mesmo? Por que razão estas moças se autodenominam vadias? Será que é porque elas não respeitam a si mesmas? Ou será que é simplesmente uma forma de dizer: "não temos vergonha de sermos chamadas de vadias pois não estamos fazendo nada de errado"? Não estamos fazendo nada que é proibido, não estamos infringindo nenhuma lei, então por que raios estão nos recriminando pelos crimes dos outros?

E quanto a rezar no meio da rua? Estão fazendo isso para provocar ainda mais os estupradores? Ou estão entrando em confronto com a cultura teofóbica estabelecida nesta cidade? Oras, antes fosse grande coisa, até parecem que nunca viram uma moça rezando ajoelhada na vida! Se algum homem se excita ao vê-las, grande coisa, elas sabem muito bem disso, mas que ao menos saibam que tudo tem hora e lugar: há uma grande diferença entre uma mulher rezando na Marcha das Vadias de uma rezando num quarto com as cortinas fechadas. E, acima de tudo, que saibam respeitá-las pelo que são: mulheres, não objetos feitos para satisfação sexual masculina.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Em defesa da religião

Um homem do século XXI com uma boa educação passa por no mínimo, 11 anos dentro de escolas, estudando matemática, literatura, arte, química, física, biologia, sem contar a formação cultural recebida pelos pais e pelas relações sociais com outros indivíduos formados. Passamos por inúmeras evoluções revoluções na história humana. Eis que então que o ateu moderno, um homem conheceu o valor do pensamento crítico, do raciocínio lógico e tantas outras formações culturais inacessíveis à maioria da população de hoje, é capaz de dizer: "Ah, mas eu não preciso de religião na minha vida."

É muito fácil dizer isso, não é?

De fato, depois que a sociedade está toda construída e de toda a formação que ele recebeu, ele é capaz de finalmente capaz de "libertar-se" da religião. Perfeitamente, assim como ele também não precisa mais de uma lança para caçar ou de um cavalo para se locomover. Mas será mesmo que o que foi construído a partir da religião seria possível de se construir de alguma outra forma? Mais ainda, será que seria sequer possível emergir uma sociedade a partir de homens não civilizados sem que eles construíssem uma religião?

Vejamos. Pegamos um grupo de bebês, colocamos eles numa grande ilha, longe de qualquer contato com a civilização. Criamos-lhes da forma mais básica possível, os ensinamos a caçar, pescar, enfim, apenas o essencial para a sua sobrevivência e esperamos um tempo bem longo, talvez milhões de anos. Como faríamos para impedir que eles criassem uma religião? Proibiríamos-lhes de manifestar qualquer crença no sobrenatural? Mas, se fizéssemos isso, não estaríamos influenciando-os com a nossa cultura e, portanto, alterando os resultados do experimento?

Não é nem sequer possível falar de uma sociedade de seres humanos que supostamente se desenvolveu sem a religião. Só houve na História da humanidade uma sociedade sem religião que se tenha conhecimento: a tribo indígena dos Pirarrã. Uma sociedade bem sucedida, mas pouco "desenvolvida" (o leitor entenda): não tem escrita, Estado ou leis. É bastante comum as pessoas cometerem anacronismo ao afirmarem que a humanidade poderia ter se desenvolvido da forma como se desenvolveu sem religião a partir da sua experiência com a sociedade atual. Ela está enraizada de tal forma em todas as culturas que é impossível determinar como elas teriam se desenvolvido sem sua influência.


O caráter social das crenças religiosas tiveram um papel fundamental na formação dos Estados e das leis. Ela foi um mecanismo rudimentar, mas eficiente, de transmissão e conservação do conhecimento acumulado. Em seus rituais encontram-se, por exemplo, práticas associadas à higiene e à prevenção de doenças, como nos conhecidos rituais de purificação do judaísmo.

Um fenômeno característico da religião é a projeção psicológica. Faz parte da natureza do homem atribuir a elementos do mundo externo as emoções e concepções internas. Ao analisar os textos religiosos antigos de forma literal, o que se encontra é um mito. Ao analisá-los como se fossem metáforas, o que se vê neles é um retrato da sociedade em que ele foi escrito e da opinião pessoal de quem o escreveu. São descrições de como o homem vê a natureza, a sociedade e a si mesmo.


É por isso, por exemplo, que existem deuses da guerra, da civilização, da lei, da justiça (característica da sociedade), da sabedoria, da coragem, do amor (característica do próprio homem), entre tantos outros exemplos, e é pelo mesmo motivo. As divindades centrais do hinduísmo, por sua vez, descrevem o processo como a sociedade se constrói (Brahma), se mantem (Vishnu) e se transforma (Shiva).

Como a projeção psicológica é natural ao homem, a criação da religião também é.

Vishnu e Shiva apresentam uma relação com as correntes de pensamento de esquerda e direita, ou liberais e conservadoras. Enquanto os liberais priorizam a transformação, a renovação da sociedade, os conservadores prezam pela manutenção da ordem social. Vishnu - o conservador - governa o mundo, impedindo a qualquer custo que Shiva - o liberal - destrua-o até o momento em que tudo se torna um caos impossível de se manter. Então Vishnu sai de cena e Shiva destrói tudo para que o mundo possa ser reconstruído por Brahma - uma descrição de como funciona a revolução.

Na doutrina budista, encontram-se várias ideias essenciais para a época e até mesmo para os dias de hoje: a valorização do pensamento crítico, do ceticismo, do auto-conhecimento, formas de lidar com o sofrimento humano que envolvem caridade, empatia (o budismo entendia sobre empatia bem antes da psicologia), a desvalorização da vingança... Por exemplo, Kalama Sutta, um discurso de Buda, defende o ceticismo, a autoridade de cada um em decidir por si mesmo no que deve acreditar e alerta para o que hoje nós denominamos falácias lógicas.

O budismo sobreviveu durante cinco séculos antes das histórias de seu fundador serem colocadas nos livros, mostrando como ele foi uma ferramenta poderosa na transmissão destas ideias mesmo sem serem colocadas nos livros.

As religiões são frequentemente criticadas pelos seus maus valores morais e por disseminar práticas perniciosas. Tome, por exemplo, a escravidão, tortura e outras práticas perversas perpetuadas pelas instituições religiosas há alguns séculos. Pela natureza da religião que é contrária ao questionamento e à crítica, foi bem difícil para os questionadores reverterem este quadro.

Entretanto, passam-se os séculos e a religião toma para si a posição contrária às mesmas práticas perversas que antes ela defendia. E o mais importante: com o mesmo rigor, dificultando o regresso à selvageria, conservando os valores morais que os antigos inimigos da religião lutaram tanto para estabelecer!

Que fique claro um detalhe: a religião não cria nem fornece uma fonte para os valores morais. Ela é, por natureza, um mecanismo de conservação. Por este motivo, ela precisa ser renovada pelos seus membros. Daí a grande importância do constante questionamento a ela.

É uma pena para a História que o catolicismo tenha se tornado um sistema autoritário, ditatorial, repressivo, imutável, inquestionável. Herança maldita do Império Romano. Durante a Idade das Trevas, Vishnu (a Igreja Católica) assassinou Shiva (os hereges), mantendo o caos. A dinâmica e diversidade revolucionária do cristianismo dos primeiros séculos só veio renascer recentemente com a Reforma Protestante. Não é à toa que ainda hoje ele defende uma ideologia arcaica: o cristianismo parou no tempo. Não é religião digna dos tempos modernos.

Comparem cristianismo e islamismo com judaísmo, budismo e espiritismo nas questões éticas contemporâneas como homossexualidade, aceitação de outras crenças, valorização da ciência, secularismo... Enquanto, em geral, os dois primeiros dizem "os descrentes serão eternamente torturados", os outros três dizem "salvação independe de crença".

Dizem que religião é antiquada, coisa do passado, contrária ao pensamento crítico, ao ceticismo, à razão. Estão equivocados, subestimam a capacidade de mutação e adaptação da religião. O pastor Gondim não é um caso isolado, ele representa um fenômeno que surgiu em resposta ao avanço da secularização e do ateísmo: o irenismo. Enquanto antirreligiosos fixam-se no que a religião é, ou às vezes até mesmo no que ela foi, não conseguem ver o que ela se tornando. Teorizam que é impossível que a religião se torne racional e não percebem que, na verdade, isso já está acontecendo. Eles cometem um erro atacar feroz e imprudentemente a religião como um todo, espalhando o sentimento de aversão e ódio. Isso é pensamento anti-irenista e, por isso, alimenta o fanatismo religioso. A religião deve ser atacada pelo seu lado podre, não pelo lado renovador.

sábado, 19 de maio de 2012

A culpa não é das vítimas

Edir, Valdemiro e Cia: nós todos sabemos como eles adoram enganar o povo para que este os entregue gratuita e irrestritamente o vil papel de dentro do bolso. Basta que eles subam ao palco, ou melhor, ao púlpito, e que façam uma pequena apresentação de mágica, com direito a "crescimento" de pernas, expulsão de demônios, adivinhação de nomes, profecias e apresentações musicais. São os nossos queridos amigos, os líderes religiosos exploradores e oportunistas. Há quem culpe as vítimas por sua ignorância, por não terem autoridade sobre si mesmas e darem um basta a esta exploração.

Para mim, é extremamente perturbador ter que defender algo tão óbvio: a exploração é por responsabilidade e culpa do explorador, não do explorado. Pensar o oposto é culpar as vítimas de estupro por sua forma de andar e de se vestir, é usar a culpa por "invasão de propriedade" como desculpa para tratar seres humanos como os animais que abatemos para consumo. É como o ladrão que invade sua casa e lhe diz: "A culpa é sua, a janela estava aberta".

Então, se uma casa está destrancada, eu tenho permissão de entrar e levar o que eu bem entender? Se eu ver uma moça sem camisa na rua e estuprá-la, não estarei cometendo um crime? E se, por outro lado, eu tiver a capacidade de enganar pessoas desinformadas, tenho o direito de fazê-lo?

Para muitos, essa é a lógica: se uma vítima poderia ter evitado o crime que ela sofreu, então ela é culpada pelo crime. Não tenho inteligência o bastante para entender o que leva alguém a perder a capacidade de julgamento, de compaixão, de compreensão e ser capaz de defender essa lógica absurda. Tiram uma regra de conduta do bolso, afirmam que a vítima desobedeceu esta regra e que, portanto, tem a responsabilidade pela sequência de eventos. Ainda que esta regra seja completamente insignificante ou totalmente sem sentido. Ainda que eles não saibam ou não concordem com esta regra.

A exploração por parte de Edir Macedo e Valdemiro Santiago equipara-se à forma como maridos violentos abusam de suas mulheres, convencendo-as de que têm culpa pela violência que sofreram. O medo manipula as pessoas. "Se você abandonar a sua fé, o demônio vai tomar conta de você e você vai voltar à mesma situação em que você estava quando chegou aqui, pedindo a ajuda de Jesus para mudar de vida. Cuidado, o demônio está dentro da igreja!"

"O demônio não quer que você deixe o seu dinheiro aqui no altar."

É claro que as vítimas destes líderes religiosos são crédulas e que, por isso, são enganadas. Mas não se pode culpar alguém pelo que não sabe. Mesmo que eles tenham sido avisados a respeito desta enganação, ainda assim não são responsáveis: eles não são obrigados a entender e nem mesmo concordar com as acusações. Afinal de contas, por que eles dariam mais ouvidos a você do que aos parentes, amigos, pastores? A culpa não é dos que não entendem, mas sim daqueles que sabem o que estão fazendo.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Procurando desculpas para ser bom

As tentativas de qualificar os ateus como imorais e talvez até como criminosos não obtiveram sucesso: há incontáveis evidências em contrário. Entretanto, uma crítica ainda permanece: a de que o ateísmo, enquanto ideologia, não é oferece de forma objetiva e absoluta uma razão para um comportamento ético. Em outras palavras, se não existe uma autoridade máxima que diga que seu propósito na vida é ser bom, qual o motivo que o ser humano teria para ser bom, para buscar a cooperação mútua em vez do lucro?

A primeira tentativa de responder a esta questão seria analisar quantos grandes feitos a humanidade foi capaz de realizar a partir da cooperação mútua. Dominamos o mundo a tal ponto que a maior ameaça à humanidade somos nós mesmos. Não todos nós, mas aqueles que não têm respeito à vida, à dignidade humana, exatamente aqueles indivíduos que buscam o lucro próprio acima do bem-estar da sociedade motivados pela ganância, raiva, egoísmo. Mas, neste caso, por que deveríamos nos importar com a humanidade e não apenas com nós mesmos? Por que importar-se com o bem-estar alheio? Isso faria sentido se houvesse a garantia de que essa preocupação seria recíproca. Entretanto, vemos que, na prática, não é o que acontece: frequentemente vemos seres humanos ajudando uns aos outros mesmo que seja aparentemente impossível que os ajudados eventualmente sejam capazes de retribuir.

O que nos leva a pergunta: mas por quê? Por que nós ajudamos as velhinhas a atravessar a rua? Por que, na nossa cultura, valorizamos tanto a ajuda que é oferecida sem esperar algo em troca? Por que é que existe toda essa preocupação em justificar a necessidade intrínseca em se fazer o que é correto?

Isto é óbvio: nós somos assim, isso faz parte da nossa natureza. Caro leitor, analise esta discussão que existe entre diferentes religiões e filosofias de vida acerca da origem e da natureza da própria ética, da diferença entre o certo e o errado. As justificativas e os argumentos variam, umas acusam as outras de não terem uma justificativa própria. Oras, quando alguém fica tentando encontrar motivos para fazer o que quer, então não se trata de procurar justificativas, mas sim desculpas.

Por mais engraçado que isso seja, o ser humano tem a mania de procurar uma desculpa para ser bom e tem medo de não conseguir encontrá-la.

Bondade é um instinto humano. Se alguém sofre, nós sofremos também, a não ser que, de alguma forma, bloqueemos a nossa razão e nossa emoção. Ao ver alguém sofrer por causa da fome, sentimos o desespero de alguém que não tem o que comer. Quando nos deparamos com alguém sendo assassinado, sentimos a mesma indignação que a vítima sente por não merecer este tratamento. A verdade é que não conseguimos ser felizes diante da infelicidade alheia, não se tivermos plena consciência dela, não se percebermos que este sofrimento é desmerecido. Isso não é nada novo, Buda já dizia isso há 25 séculos atrás.

Há muitos pelo mundo que tentam negar essa simples verdade. Fazem malabarismos lógicos na tentativa de justificar o injustificável, de encontrar desculpas para satisfazer seus desejos pessoais egoístas sem sentir a culpa pelas consequências de seus atos. É por isso é que os estudantes da USP foram caracterizados como maconheiros, vagabundos que querem transgredir a lei sem sofrer as "consequências". Daí também a necessidade que a mídia teve em dizer que os ex-moradores do Pinheirinho eram invasores, usuários de drogas, criminosos. É este o porquê de toda a distorção dos fatos por parte dos neoliberais na tentativa de fazer a exploração de pessoas para obtenção de lucro não parecer tão ruim.

Se eles encarassem os fatos, a verdade nua e crua, se tivessem contato com o sofrimento que suas atitudes causam, deixariam de serem felizes.

Nós, seres humanos, desejamos a bondade e não há ninguém, neste universo ou fora dele, que vai nos condenar por isso. Essa justificativa já é o bastante.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A velha na janela

A velha vai aparecer para nos assustar. É isso o que eu ouvia enquanto simplesmente respirava, deitado, olhos fechados, esperando adormecer. Ignorei a conversa, é claro, tão claro quanto Catatau não fizera o mesmo, dizia estar com medo da velha. Ele deveria compreender que aquela história, já tinha consciência sem tê-la ouvido, era ridícula. Sem dúvida, apenas mais uma estória apelando ao estereótipo de bruxa. No dia seguinte, tivesse a oportunidade, deixaria isso claro na mente dele. As vozes e os risos, que antes ocupavam o ar, aquietaram-se. Ouço passos e o remexer do colchão que estava reservado ao pequenino. Um sussurro rompeu o silêncio.

- Você está dormindo?

Abri os olhos, virei o rosto e vi o vulto de um menino quase deitado, cotovelo sobre o colchão e a cabeça curiosa levantada na expectativa de que eu estivesse acordado. Queria conversar.

- Isso foi um sim? - voltou ao indagar, inquieto com o meu silêncio.
- Está falando comigo?
- Sim.

Não falamos sobre a velha, mas sobre praia e qualquer outra coisa. Ele decerto queria espantar o medo conversando com o primo, o mais velho entre os meninos. Ele tem segurança, não deve ter medo de histórias de terror. De fato, é difícil que eu consiga ver terror num filme do gênero, quanto mais numa pequena fábula inventada para espantar o menorzinho.

Manda-Chuva, irmão mais velho do Catatau, entra no quarto. Catatau diz que Tico, seu irmão, e Teco, amigo deste, planejavam nos assustar de alguma forma. Manda-Chuva fecharia a porta e ligaria o ventilador. Sugeri que deixassem a porta aberta. Não, não pode, a velha pode aparecer. Ah, claro, a velha.

- Não se preocupe, Catatau, - dizia o Manda-Chuva, - eu e o Bandeirinha não vamos deixar a velha lhe pegar.

Não concordo com esse tipo de atitude. "Não se preocupe que o bicho-papão não vai lhe pegar, estamos aqui pra lhe proteger." Não, ele precisava compreender o óbvio, não fugir dele.

- Acho muito estranho essa história de "velha".

Escutei um "por quê?" duplo e o breve silêncio à espera de uma resposta após morder na isca. Adoro esse silêncio.

- Alguém já viu velha fazer mal a alguém?
- Já vi, nos filmes, - respondeu Catatau.
- Ah, nos filmes, é claro. Já as velhas eu que conheço são do tipo "ah, coma mais um pouquinho..."
- Mas essa velha só aparece na janela com uma faca na mão para assustar, depois foge.
- Ela só assusta? Então ela é boazinha.

Pausa para assimilar. Ponto pra mim. Risos. Catatau ri engraçado, ele não é apenas uma criança, é quase um estereótipo.

- Ah, imagine uma velha com uma faca na mão, deve assustar bastante. E se ela, do nada, aparece na porta da sacada, já pensou?
- Mas como ela faria para chegar aqui na sacada?
- Voando, - replicou o Manda-Chuva.
- Mas como? Ela é o super-homem.
- Ela é uma vampira.

Ahm? Vampira?

- Então pra quê a faca?

Mais uma pausa para pensar. A faca é só para assustar, ah, então tá. E deve assustar, afinal, imagine uma velha com uma faca na mão. A não ser que ela esteja passando manteiga no pão. Mais risos.

- Você está distraído e de repente vê a velha pelo espelho, atrás de você, com uma faca, passando manteiga no pão.
- Mas tem que ser no banheiro, - dizia Catatau, - porque é lá que eles falaram que a velha aparece.
- No espelho do banheiro? - indaguei.
- É, - dizia, num tom de "qual o problema?"

- Mas não era na janela?

Mais pausa e mais risos. Ninguém conseguiu entender. Mas é bem fácil entender: trata-se de uma estória criada em camadas. A velha na janela com uma faca é uma camada. Avelha no espelho do banheiro é outra, criada para deixar a primeira mais assustadora. A velha vampira é outra velha. Cada uma das camadas é criada na tentativa de corrigir uma imperfeição das anteriores. Mas as camadas não concordam entre si quando são analisadas, são diferentes e inconsistentes entre si. Os ouvintes da estória, entretanto, ficam tão concentrados em ter medo da velha que não percebem os detalhes.

- Essa história tem mais furos que uma peneira! - comentava, no meio das gargalhadas que custavam a se extinguir.
- Essa história tem mais furos que as vítimas da velha! - comentou o Manda-Chuva, provocando ainda mais gargalhadas.

Pensei que este comentário faria Catatau sentir medo. Tenho impressão que ele, desde o começo, no fundo, não acreditava na história, mas queria que alguém lhe tirasse qualquer dúvida de que se tratava de uma mentira. Nas histórias que se contam, ou alguém acredita, ou desacredita, em maior ou menor grau. Na vida real, não é tão simples assim. Se Catatau acreditasse na história, não teria rido do comentário nefasto do Manda-Chuva. Se Catatau não acreditasse, não teria comentado que Manda-Chuva conseguiu consertar a história.

- Não conseguiu, não! - comentei, ao que o Manda-Chuva concordou.
- Conseguiu, sim.
- Ele não conseguiu consertar nada, não, Catatau. Ele só conseguiu botar medo, mas a história tem ainda mais inconsistências. Por exemplo, ela não aparecia na janela só pra assustar? Mas agora ela tem vítimas! E ela não era um vampira? Mas vampiros só deixam dois furos. E se ela é vampira, pra quê a faca?
- Para assustar.
- Então, para assustar! E não...
- Mas essa não foi o que eu contei para o Tico e o Teco, - interrompeu-me Manda-Chuva - e a minha história não tem inconsistências. Eu vi uma velha parada na sacada aí da frente, olhando, mas de repente ela sumiu. Então eu falei com o porteiro e ele disse que tinha uma velha naquele apartamento, mas ela tinha morrido há 15 anos atrás. Depois disso, ela apareceu nesta sacada.

Tive a impressão que esta era a primeira camada, que passou da boca do Manda-Chuva às de Tico e Teco, que, por sua vez, acrescentaram mais camadas à estória, para torná-la mais palpável.

- Uma velha morando ali? - disse eu, depois de cogitar por um segundo. - Mas estes prédios, apartamentos de praia e verão, não são de morar, são de alugar. Ninguém "mora" aqui.
- Ah, não sei, foi o que o porteiro me disse.

Pude sentir a frustração do Manda-Chuva. Não que ele quisesse amedrontar o pequeno, mas deve ter se frustrado por não conseguir criar uma estória coerente.
Eu ia apresentar mais objeções, - o prédio não devia ter 15 anos, uma velha não moraria num apartamento com escada interna feito para umas sete pessoas, - mas fui interrompido, para a minha surpresa, pelas objeções do próprio Catatau. Fim de jogo, Catatau finalmente entendeu e eu sorri. Não bastava que ele soubesse que era apenas uma estória, era necessário que ele compreendesse isso. Mais do que isso, era necessário que ele aprendesse a lição: ele não precisa de mãe, pai, primo ou irmão para protegê-lo de estórias. Para isso, ele tem o próprio cérebro.

É vergonhoso para o mundo que um pivete como ele conseguiu aprender esta lição tão óbvia, mas tão menosprezada, em menos de 15 minutos. Adultos, quando seus filhos têm medo de uma estória, dizem-nos para não terem medo, que é uma mentira, uma bobagem que eles inventaram para botar-lhes medo. Estes adultos ainda não aprenderam esta lição: se é tão óbvio que é apenas uma estória, por que eles não mostram isso? Por que eles não explicam o motivo?

É óbvio, é porque eles pensam que a estória é falsa, mas não sabem por quê! Eles apenas julgam saber! Eles pensam que sabem! Mas não sabem, apenas pensam! Portanto, em vez de esclarecer, ocultam; em vez de acender as luzes, apagam-nas e deixam as crianças no escuro. Ensinam-nas: acredite em mim, não neles. Acredite em tudo o que eu disser, não duvide, não questione, não tente compreender. É bem simples: Papai Noel existe, bicho-papão não existe, coelhinho da páscoa existe, ponto, fim de papo. Por quê? Ah, por favor, faça uma pergunta mais fácil!

Barulho na porta.
- Ai, meu Deus! - exclamou Catatau. - Ah, Teco!

Catatau ria tanto que nem conseguia mais falar. Tico e Teco eram os donos dos vultos que entraram aos gritos, trancos e barrancos e que riram em seguida.

- Vocês se assustaram? - perguntava Teco.
- Claro que não, né?
- Não, mas fala sério, alguém se assustou?
- Ah, claro, nós morremos de medo, nossa! Olha o Catatau, está se acabando de tanto rir, você acha que ele ficou com medo?

Pausa.
- Ah, está bem. Mas, diga, de quê vocês estavam rindo?
- Da história que vocês dois contaram!
- É, essa história tem um monte de furos!
- Furos? Que furos?

Na tentativa de que os dois se frustrassem e nos deixassem em paz, eu disse-lhes que velhas não são assassinas. Velhas são avós, ou caducas, e às vezes podem até ser chatas, mas não fazem nada de mais. Nem sequer conseguiriam segurar uma faca. Novamente, comentaram sobre as velhas dos filmes. Ah, é claro, as velhas dos filmes são super-velhas, escalam paredes e dão saltos mortais. Contei também que hora diziam que a velha aparecia na janela, hora no espelho. Riram de seu próprio embaraço.

Explicaram que a velha conseguia voar para aparecer na janela porque era um fantasma. Parei para pensar.

- Mas fantasmas podem segurar facas? Fantasmas voam?
- Sim.
- Como é que você sabe?

Pausa.

- Ah, a gente conversou com ela ali na sacada! - dizia Tico, rindo.
- É, a gente falou com ela, - confirmava Teco.

Estenderam o assunto por mais um tempo, sem tentar explicar mais nada. Eu também não falei muito, estava cansado, queria dormir.

- Vejam, - disse o manda-chuva, - nós já estamos cansados dessa estória, queremos dormir. Vão embora, deixem a gente dormir.
- É, eu não estou com medo da velha, Tico, - disse o catatau, - eu estou com medo de você, deixe a gente em paz.
- Convenhamos, todo o mundo sabe que a velha não existe, - complementou o manda-chuva.

Os dois saíram do quarto e a velha faleceu.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Em busca do Jesus histórico 8: A ressurreição

A ressurreição de Jesus, o nazareno, pode ser considerada como evento histórico? Esta é certamente uma pergunta ousada de ser feita nesta sociedade, fato que torna obrigatória a tentativa respondê-la às melhores habilidades da nossa limitada razão. Uma perspectiva bem inteligente de endereçar a questão ocorreu num interessante (e recomendado!) debate entre o filósofo Dr. William Lane Craig e o historiador do Novo Testamento Dr. Bart D. Ehrman, com o tema Jesus ressuscitou dos mortos?



Apresentarei os pontos centrais de forma bem resumida.

Craig defende que hipótese da ressurreição é a que melhor explica quatro eventos históricos que os historiadores do novo testamento costumam classificar como prováveis:

  1. Sepultamento de Jesus num túmulo,
  2. A descoberta de que o túmulo estava vazio,
  3. Aparições de Jesus em várias ocasiões,
  4. A crença dos discípulos originais de que Jesus havia ressuscitado.

Note que não há como estabelecer que a aparição de Jesus tenha sido física - ela também pode ter sido causada por ilusão, impressão, sonho ou loucura.

Ehrman diz que um milagre é o menos provável de todos os eventos em quaisquer circunstâncias e conclui que não se pode, mesmo sob as evidências, afirmar que um milagre é a explicação mais provável para um evento. Como o dever de um historiador é chegar à hipótese mais provável, este não pode concluir que Jesus tenha ressuscitado, pois esta seria, de acordo com nosso conhecimento sobre a vida e a morte, o evento mais improvável. A ressurreição é uma explicação teológica, não histórica.

O argumento matemático

Em seguida, William L. Craig refuta este argumento dizendo que se trata de um argumento filosófico e não histórico, originalmente feito por David Hume no século XVIII que foi argumento refutado por filósofos posteriores. Ele diz que a probabilidade em questão é a probabilidade de ter havido uma ressurreição com respeito às evidências 1 a 4. Entretanto, Craig dá um grande vacilo ao explicar por que este argumento é inválido apresentando uma fórmula (conhecida como Teorema de Bayes Estendido). Ei-la:


onde

  • P(R|E) é a probabilidade de ocorrer a ressurreição supondo as evidências 1 a 4;
  • P(R) é a probabilidade da ressurreição ocorrer (sem supor que há evidências);
  • P(E|R) é a probabilidade das evidências ocorrerem supondo que houve ressurreição;
  • P(Rc) é a probabilidade de não ocorrer uma ressurreição; e
  • P(E|Rc) é a probabilidade das evidências ocorrerem dado que não houve ressurreição.

É muito fácil para um matemático perceber que essa fórmula, na verdade, testemunha contra a tese de William, não em seu favor. Basta notar que  P(Rc) é praticamente 1 (ou seja, que uma ressurreição é extremamente improvável) que segue quase imediatamente que basta que a probabilidade de as evidências aparecerem sem uma ressurreição ser maior que a probabilidade da ressurreição em si. Mais especificamente:





Ou seja, basta que P(E|Rc) seja maior do que P(R) para que P(R|E) seja menor do que 0,5 (ou 50%). Oras, seria improvável que as evidências 1 a 4 ocorressem de forma aleatória, mas, ainda assim, não seria tão improvável quanto um milagre!

Por exemplo, não seria nada extraordinário que alguém tirasse o corpo do túmulo por algum motivo - talvez, por exemplo, para escondê-lo, ou por acreditar que Jesus não mereceria um enterro digno. Também não seria nada extraordinário que ninguém pudesse encontrar o corpo depois disso, ou que este estivesse deteriorado ao ponto de ninguém conseguir reconhecê-lo - sem contar na desfiguração causada pela própria crucificação. A crença na ressurreição seguiria quase imediatamente - pois isso seria facilmente algo que as pessoas iriam querer acreditar. O fato de pessoas avistarem (ou alegarem terem avistado) Jesus em carne e osso também estaria apenas um passo adiante, da mesma forma as pessoas facilmente veem espíritos em casas mal assombradas simplesmente porque acreditam que há espíritos nelas.


Na parte de perguntas e respostas, Craig afirma que a fórmula foi usada por Richard Swinburne e que este calculou que a probabilidade da ressurreição deveria ser por volta de 97%. Ao analisar uma revisão de sua tese, nota-se que ele argumenta de forma extremamente diferente de Craig e ele não usou números calculados, mas "chutou" valores para as probabilidades.

Swinburne argumenta que Jesus é a única pessoa do mundo que satisfez as condições prévias e póstumas de ser o próprio Deus encarnado - pois ele cumpriu as profecias do Antigo Testamento. Assumindo a probabilidade da existência de Deus como sendo 50% e a probabilidade dele querer se reencarnar também como 50%, chega-se à conclusão que a probabilidade de Jesus ressuscitar (sem considerar os fatos 1 a 4) é extremamente alta: 25%! Isso vai contra não apenas o argumento de Ehrman, mas também o de William Craig: uma ressurreição é extremamente improvável.

Uma refutação à afirmação que Jesus realizou as profecias do Antigo Testamento pode ser encontrada nesta e nesta páginas (que, apesar de religiosas, utilizam bons argumentos históricos).

Ao apresentar a fórmula, William deu um tiro no próprio pé. Mas a plateia, é claro, não percebeu, e nem Bart. Sorte daquele que este não era matemático, senão teria levado uma surra.

Por que as pessoas acreditavam na ressurreição

No texto Os santos "incorruptos": como mentiras se tornam verdade, eu dei um exemplo bem claro de como alegações extraordinárias e racionalmente inexplicáveis pode surgir através da comunicação boca-a-boca simplesmente porque as pessoas estão muito suscetíveis a acreditarem nelas e pouco suscetíveis a levarem as evidências contrárias em conta. Ainda que alguém soubesse o que realmente ocorreu e tentasse explicar isso aos cristãos, facilmente inventariam uma desculpa para desacreditá-lo.

O fato é que haviam pessoas da época espalhando outras versões da história, como é evidenciado na própria bíblia:

Enquanto elas iam, vieram à cidade alguns soldados da guarda, e contaram aos principais sacerdotes tudo o que havia sucedido.

Estes, reunidos com os anciãos, tendo consultado entre si, deram bastante dinheiro aos soldados,

recomendando-lhes que dissessem: Os seus discípulos vieram de noite e furtaram-no, enquanto nós dormíamos.

Se isto chegar aos ouvidos do governador, nós o persuadiremos, e vos livraremos de cuidado.

Os soldados receberam o dinheiro e fizeram como lhes haviam recomendado; e esta notícia se há divulgado entre os judeus até o dia de hoje.
Mateus 28:11-15
Enquanto elas iam, vieram à cidade alguns soldados da guarda, e contaram aos principais sacerdotes tudo o que havia sucedido. Estes, reunidos com os anciãos, tendo consultado entre si, deram bastante dinheiro aos soldados, recomendando-lhes que dissessem: Os seus discípulos vieram de noite e furtaram-no, enquanto nós dormíamos. Se isto chegar aos ouvidos do governador, nós o persuadiremos, e vos livraremos de cuidado. Os soldados receberam o dinheiro e fizeram como lhes haviam recomendado; e esta notícia se há divulgado entre os judeus até o dia de hoje.

É fácil vez que esta explicação é inconsistente com os eventos apresentados nos evangelhos. Entretanto, note que esta explicação está sendo apresentada pelos que acreditavam na ressurreição, não por quem acreditava nesta explicação alternativa. Esta se perdeu na história, não dá para confiar que este trecho retratado no livro de Mateus é a versão correta ou completa desta explicação. Seria como aprender a Teoria da Evolução ou do Big Bang pela boca de um criacionista fanático. Ao ouvir de um criacionista, estas teorias, é claro, se tornam ridículas e irracionais. O mesmo vale para a passagem acima.
O meu ponto não é que esta explicação seja a verdadeira, mas que havia explicações alternativas que foram ignoradas e perdidas - infelizmente, elas só poderiam ser conhecidas e defendidas por pessoas da época.


Para finalizar, eu não estou dizendo que a hipótese da ressurreição é impossível, mas apenas que ela é indefensável.


segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O Pinheirinho e a nossa sociedade maldita


Seis mil moradores do Pinheirinho foram chutados de suas próprias casas à base de balas de borracha e bombas de gás. O motivo? Um criminoso do colarinho branco, Naji Nahas, que já foi acusado de lavagem de dinheiro, decidiu que queria de volta o terreno. Por quê? Dinheiro. O que mais poderia ser?

A violência não foi contida. Moradores foram feridos (um deles por uma bala letal) e tiveram que ser levados ao hospital. Nem deixaram que os habitantes retirassem seus pertences de suas casas antes de destruí-las. Expulsos, sem ter para onde ir, foram recebidos por uma igreja. Como esta não tinha espaço o suficiente, de lá foram levados a um ginásio no Parque do Morumbi. Passaram calor devido ao excesso de pessoas, pelo menos quatro delas desmaiaram e foram levadas ao hospital. Não havia água nos banheiros. Pessoas desapareceram, mas, ante tanta confusão, como saber se elas simplesmente fugiram ou se foram mortas?

Chutados de suas casas como cães, encaminhados para os abrigos feito gado, amontoados e encaixotados feito mercadoria. Não eram humanos, apenas ratos que ocupavam o terreno de um aristocrata, capim inconveniente que se remove e queima. Descartáveis.

Dizem que os policiais estavam apenas no cumprimento da lei. Acontece que, neste caso, a lei traiu os direitos humanos que garantem a todos o direito à moradia. Seis mil pessoas perderam esse direito para que um único indivíduo tivesse o direito à propriedade. Para maiores detalhes, deixo aqui a excelente entrevista que a urbanista Raquel Rolnik concedeu à Folha de São Paulo.

Se foi a lei quem deu a estes homens o que eles receberam, maldita seja essa lei!

O senhor governador Geraldo Alckmin comunicou à imprensa que providenciará moradia para os indivíduos que foram expulsos do Pinheirinho. Oras, por que não fez isso antes de expulsá-los? Pois a Selecta que esperasse a providência de moradia para os seis mil antes de reaver seu terreno, ou que fosse mais inteligente e buscasse um acordo que fosse mais simples de cumprir, como vender seu terreno à prefeitura de São José dos Campos em troca de suas dívidas em impostos.

Ouvi alguns dizerem que os invasores deveriam trabalhar para comprar a própria casa. Oras, antes fosse fácil assim. Veja, por exemplo, o filme “Em busca da felicidade”. Mesmo o protagonista sendo inteligente bem acima da média, mesmo tendo uma tremenda força de vontade, custou muito a ele conseguir sair da miséria. Oras, e se ele não fosse tão inteligente? Que chances teria o filho dele na vida se a sua educação foi numa creche que só ensinava as crianças a assistirem televisão? Como ele sairia daquela situação se não tivesse uma força de vontade muito maior que a média da população?


Um amigo meu contou que, enquanto fazia trabalho voluntário numa favela, ouviu o próprio pai ameaçar de morte a tia. Ele tentou dizer à criança que seu pai não falava sério, não podia estar falando sério, mas esta insistiu "Não, moço, ele mata mesmo, meu pai mata mesmo." Nossa espécie tem uma característica única entre os animas: nosso cérebro só termina seu desenvolvimento na infância, fora do útero, tempo em que absorve, na sua própria formação, as características do ambiente ao seu redor. Que outro destino poderia ter uma criança criada num ambiente violento senão a violência? Como esperar que ela não aprenda a crueldade que está ao seu redor? Como julgar por sua violência aqueles que foram criados desta maneira?

Outro dia vi um homem extremamente triste na rodoviária em Campinas porque tinha vindo de Belo Horizonte para São Paulo para conseguir um emprego, não conseguiu e queria voltar, mas não tinha dinheiro para a passagem. Oras, diga-me, caro leitor, ele não tinha boa vontade? Se ele comprou uma passagem de ida, sem ter dinheiro para a volta, não é porque tinha esperança? Oras, eu afirmo que não teria tal coragem, a não ser que eu estivesse numa situação desesperadora. Mas, mesmo assim, não sabia ler, mal tinha inteligência para se expressar, que chances ele teria? Mesmo voltando para Belo Horizonte, para a família dele, diga-me, se for capaz, caro leitor, qual seria a sua chance? Voltaria, feliz por reencontrar a família, com muito boa vontade para melhorar sua condição de vida… mas e daí? Quanto tempo até ele voltar a passar fome? E seus filhos, sem uma boa educação, como ajudariam o próprio pai?

Como quebrar este ciclo vicioso infernal?

Maldita é a sociedade que nega o direito à moradia para 6 mil pessoas para dar a um único indivíduo corrupto, egoísta e rico o direito a ter ainda mais dinheiro! Maldita é a sociedade que olha com desdém para essa injustiça simplesmente para assegurar seu direito à ganância! Maldita é a sociedade cujos cidadãos ainda não aprenderam que o direito de um começa quando termina o do outro!

Maldita é a nossa sociedade!

Sem compaixão, sem decência, sem solidariedade, que reclama do pobre porque este invade uma terra vazia, inabitada, inútil! É mais fácil mesmo ignorar o problema, deixar os pobres que se fodam, culpá-los pelos seus próprios problemas, transformá-los em criminosos, marginalizá-los. Sociedade maldita e hipócrita que tem a barriga cheia e reclama dos que têm a barriga vazia por quererem enchê-la! Se a lei não consegue garantir para essas pessoas nem sequer o básico (moradia, comida, educação, trabalho e cultura), então, que razão eles teriam para segui-la? Oras, quem é que não transgride a lei, seja com pirataria, seja avançando o sinal vermelho?

E que raios de lei é essa, que permite e, pior, apoia um evento tão imoral quanto este?

Um dos princípios básicos da ética é que todos são iguais perante ela. Mas não há igualdade alguma quando o direito à propriedade é garantido a um indivíduo enquanto o direito à moradia (que é, diga-se de passagem, muito mais essencial) não é garantido para outros seis mil. Dizem que ninguém está acima da lei. Oras, isso é uma falsidade, a ética está acima da lei. Se a lei é contra a ética, então os transgressores da lei não são criminosos! Criminosa é a própria lei! Criminoso é o Estado que não deu aos habitantes do Pinheirinho o básico para torná-los cidadãos! Criminosa é a prefeitura de São José dos Campos que não comprou o terreno em troca de parte das dívidas da Selecta para entregá-lo aos moradores! Criminosa é a justiça que não desapropriou o terreno pelo bem público e que não buscou um acordo justo entre a Selecta, a prefeitura e os moradores! Oras, justiça é só o seu nome! Criminoso é o Estado de São Paulo que expulsou-os de lá à força e com violência sem antes providenciar lugar para eles passarem a morar e os amontoou num ginásio feito mercadoria acumulada nos estoques de um supermercado! Criminosos são os agentes da lei que pensam que estão acima da ética!

Criminosos somos nós, sociedade maldita e desumana, que tratamos eles como cachorros e depois reclamamos quando levamos uma mordida!


Manifesto pela Denúncia do Caso Pinheirinho à Comissão Interamericana de Direitos Humanos

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