terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Em busca do Jesus histórico 8: A ressurreição

A ressurreição de Jesus, o nazareno, pode ser considerada como evento histórico? Esta é certamente uma pergunta ousada de ser feita nesta sociedade, fato que torna obrigatória a tentativa respondê-la às melhores habilidades da nossa limitada razão. Uma perspectiva bem inteligente de endereçar a questão ocorreu num interessante (e recomendado!) debate entre o filósofo Dr. William Lane Craig e o historiador do Novo Testamento Dr. Bart D. Ehrman, com o tema Jesus ressuscitou dos mortos?



Apresentarei os pontos centrais de forma bem resumida.

Craig defende que hipótese da ressurreição é a que melhor explica quatro eventos históricos que os historiadores do novo testamento costumam classificar como prováveis:

  1. Sepultamento de Jesus num túmulo,
  2. A descoberta de que o túmulo estava vazio,
  3. Aparições de Jesus em várias ocasiões,
  4. A crença dos discípulos originais de que Jesus havia ressuscitado.

Note que não há como estabelecer que a aparição de Jesus tenha sido física - ela também pode ter sido causada por ilusão, impressão, sonho ou loucura.

Ehrman diz que um milagre é o menos provável de todos os eventos em quaisquer circunstâncias e conclui que não se pode, mesmo sob as evidências, afirmar que um milagre é a explicação mais provável para um evento. Como o dever de um historiador é chegar à hipótese mais provável, este não pode concluir que Jesus tenha ressuscitado, pois esta seria, de acordo com nosso conhecimento sobre a vida e a morte, o evento mais improvável. A ressurreição é uma explicação teológica, não histórica.

O argumento matemático

Em seguida, William L. Craig refuta este argumento dizendo que se trata de um argumento filosófico e não histórico, originalmente feito por David Hume no século XVIII que foi argumento refutado por filósofos posteriores. Ele diz que a probabilidade em questão é a probabilidade de ter havido uma ressurreição com respeito às evidências 1 a 4. Entretanto, Craig dá um grande vacilo ao explicar por que este argumento é inválido apresentando uma fórmula (conhecida como Teorema de Bayes Estendido). Ei-la:


onde

  • P(R|E) é a probabilidade de ocorrer a ressurreição supondo as evidências 1 a 4;
  • P(R) é a probabilidade da ressurreição ocorrer (sem supor que há evidências);
  • P(E|R) é a probabilidade das evidências ocorrerem supondo que houve ressurreição;
  • P(Rc) é a probabilidade de não ocorrer uma ressurreição; e
  • P(E|Rc) é a probabilidade das evidências ocorrerem dado que não houve ressurreição.

É muito fácil para um matemático perceber que essa fórmula, na verdade, testemunha contra a tese de William, não em seu favor. Basta notar que  P(Rc) é praticamente 1 (ou seja, que uma ressurreição é extremamente improvável) que segue quase imediatamente que basta que a probabilidade de as evidências aparecerem sem uma ressurreição ser maior que a probabilidade da ressurreição em si. Mais especificamente:





Ou seja, basta que P(E|Rc) seja maior do que P(R) para que P(R|E) seja menor do que 0,5 (ou 50%). Oras, seria improvável que as evidências 1 a 4 ocorressem de forma aleatória, mas, ainda assim, não seria tão improvável quanto um milagre!

Por exemplo, não seria nada extraordinário que alguém tirasse o corpo do túmulo por algum motivo - talvez, por exemplo, para escondê-lo, ou por acreditar que Jesus não mereceria um enterro digno. Também não seria nada extraordinário que ninguém pudesse encontrar o corpo depois disso, ou que este estivesse deteriorado ao ponto de ninguém conseguir reconhecê-lo - sem contar na desfiguração causada pela própria crucificação. A crença na ressurreição seguiria quase imediatamente - pois isso seria facilmente algo que as pessoas iriam querer acreditar. O fato de pessoas avistarem (ou alegarem terem avistado) Jesus em carne e osso também estaria apenas um passo adiante, da mesma forma as pessoas facilmente veem espíritos em casas mal assombradas simplesmente porque acreditam que há espíritos nelas.


Na parte de perguntas e respostas, Craig afirma que a fórmula foi usada por Richard Swinburne e que este calculou que a probabilidade da ressurreição deveria ser por volta de 97%. Ao analisar uma revisão de sua tese, nota-se que ele argumenta de forma extremamente diferente de Craig e ele não usou números calculados, mas "chutou" valores para as probabilidades.

Swinburne argumenta que Jesus é a única pessoa do mundo que satisfez as condições prévias e póstumas de ser o próprio Deus encarnado - pois ele cumpriu as profecias do Antigo Testamento. Assumindo a probabilidade da existência de Deus como sendo 50% e a probabilidade dele querer se reencarnar também como 50%, chega-se à conclusão que a probabilidade de Jesus ressuscitar (sem considerar os fatos 1 a 4) é extremamente alta: 25%! Isso vai contra não apenas o argumento de Ehrman, mas também o de William Craig: uma ressurreição é extremamente improvável.

Uma refutação à afirmação que Jesus realizou as profecias do Antigo Testamento pode ser encontrada nesta e nesta páginas (que, apesar de religiosas, utilizam bons argumentos históricos).

Ao apresentar a fórmula, William deu um tiro no próprio pé. Mas a plateia, é claro, não percebeu, e nem Bart. Sorte daquele que este não era matemático, senão teria levado uma surra.

Por que as pessoas acreditavam na ressurreição

No texto Os santos "incorruptos": como mentiras se tornam verdade, eu dei um exemplo bem claro de como alegações extraordinárias e racionalmente inexplicáveis pode surgir através da comunicação boca-a-boca simplesmente porque as pessoas estão muito suscetíveis a acreditarem nelas e pouco suscetíveis a levarem as evidências contrárias em conta. Ainda que alguém soubesse o que realmente ocorreu e tentasse explicar isso aos cristãos, facilmente inventariam uma desculpa para desacreditá-lo.

O fato é que haviam pessoas da época espalhando outras versões da história, como é evidenciado na própria bíblia:

Enquanto elas iam, vieram à cidade alguns soldados da guarda, e contaram aos principais sacerdotes tudo o que havia sucedido.

Estes, reunidos com os anciãos, tendo consultado entre si, deram bastante dinheiro aos soldados,

recomendando-lhes que dissessem: Os seus discípulos vieram de noite e furtaram-no, enquanto nós dormíamos.

Se isto chegar aos ouvidos do governador, nós o persuadiremos, e vos livraremos de cuidado.

Os soldados receberam o dinheiro e fizeram como lhes haviam recomendado; e esta notícia se há divulgado entre os judeus até o dia de hoje.
Mateus 28:11-15
Enquanto elas iam, vieram à cidade alguns soldados da guarda, e contaram aos principais sacerdotes tudo o que havia sucedido. Estes, reunidos com os anciãos, tendo consultado entre si, deram bastante dinheiro aos soldados, recomendando-lhes que dissessem: Os seus discípulos vieram de noite e furtaram-no, enquanto nós dormíamos. Se isto chegar aos ouvidos do governador, nós o persuadiremos, e vos livraremos de cuidado. Os soldados receberam o dinheiro e fizeram como lhes haviam recomendado; e esta notícia se há divulgado entre os judeus até o dia de hoje.

É fácil vez que esta explicação é inconsistente com os eventos apresentados nos evangelhos. Entretanto, note que esta explicação está sendo apresentada pelos que acreditavam na ressurreição, não por quem acreditava nesta explicação alternativa. Esta se perdeu na história, não dá para confiar que este trecho retratado no livro de Mateus é a versão correta ou completa desta explicação. Seria como aprender a Teoria da Evolução ou do Big Bang pela boca de um criacionista fanático. Ao ouvir de um criacionista, estas teorias, é claro, se tornam ridículas e irracionais. O mesmo vale para a passagem acima.
O meu ponto não é que esta explicação seja a verdadeira, mas que havia explicações alternativas que foram ignoradas e perdidas - infelizmente, elas só poderiam ser conhecidas e defendidas por pessoas da época.


Para finalizar, eu não estou dizendo que a hipótese da ressurreição é impossível, mas apenas que ela é indefensável.


segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O Pinheirinho e a nossa sociedade maldita


Seis mil moradores do Pinheirinho foram chutados de suas próprias casas à base de balas de borracha e bombas de gás. O motivo? Um criminoso do colarinho branco, Naji Nahas, que já foi acusado de lavagem de dinheiro, decidiu que queria de volta o terreno. Por quê? Dinheiro. O que mais poderia ser?

A violência não foi contida. Moradores foram feridos (um deles por uma bala letal) e tiveram que ser levados ao hospital. Nem deixaram que os habitantes retirassem seus pertences de suas casas antes de destruí-las. Expulsos, sem ter para onde ir, foram recebidos por uma igreja. Como esta não tinha espaço o suficiente, de lá foram levados a um ginásio no Parque do Morumbi. Passaram calor devido ao excesso de pessoas, pelo menos quatro delas desmaiaram e foram levadas ao hospital. Não havia água nos banheiros. Pessoas desapareceram, mas, ante tanta confusão, como saber se elas simplesmente fugiram ou se foram mortas?

Chutados de suas casas como cães, encaminhados para os abrigos feito gado, amontoados e encaixotados feito mercadoria. Não eram humanos, apenas ratos que ocupavam o terreno de um aristocrata, capim inconveniente que se remove e queima. Descartáveis.

Dizem que os policiais estavam apenas no cumprimento da lei. Acontece que, neste caso, a lei traiu os direitos humanos que garantem a todos o direito à moradia. Seis mil pessoas perderam esse direito para que um único indivíduo tivesse o direito à propriedade. Para maiores detalhes, deixo aqui a excelente entrevista que a urbanista Raquel Rolnik concedeu à Folha de São Paulo.

Se foi a lei quem deu a estes homens o que eles receberam, maldita seja essa lei!

O senhor governador Geraldo Alckmin comunicou à imprensa que providenciará moradia para os indivíduos que foram expulsos do Pinheirinho. Oras, por que não fez isso antes de expulsá-los? Pois a Selecta que esperasse a providência de moradia para os seis mil antes de reaver seu terreno, ou que fosse mais inteligente e buscasse um acordo que fosse mais simples de cumprir, como vender seu terreno à prefeitura de São José dos Campos em troca de suas dívidas em impostos.

Ouvi alguns dizerem que os invasores deveriam trabalhar para comprar a própria casa. Oras, antes fosse fácil assim. Veja, por exemplo, o filme “Em busca da felicidade”. Mesmo o protagonista sendo inteligente bem acima da média, mesmo tendo uma tremenda força de vontade, custou muito a ele conseguir sair da miséria. Oras, e se ele não fosse tão inteligente? Que chances teria o filho dele na vida se a sua educação foi numa creche que só ensinava as crianças a assistirem televisão? Como ele sairia daquela situação se não tivesse uma força de vontade muito maior que a média da população?


Um amigo meu contou que, enquanto fazia trabalho voluntário numa favela, ouviu o próprio pai ameaçar de morte a tia. Ele tentou dizer à criança que seu pai não falava sério, não podia estar falando sério, mas esta insistiu "Não, moço, ele mata mesmo, meu pai mata mesmo." Nossa espécie tem uma característica única entre os animas: nosso cérebro só termina seu desenvolvimento na infância, fora do útero, tempo em que absorve, na sua própria formação, as características do ambiente ao seu redor. Que outro destino poderia ter uma criança criada num ambiente violento senão a violência? Como esperar que ela não aprenda a crueldade que está ao seu redor? Como julgar por sua violência aqueles que foram criados desta maneira?

Outro dia vi um homem extremamente triste na rodoviária em Campinas porque tinha vindo de Belo Horizonte para São Paulo para conseguir um emprego, não conseguiu e queria voltar, mas não tinha dinheiro para a passagem. Oras, diga-me, caro leitor, ele não tinha boa vontade? Se ele comprou uma passagem de ida, sem ter dinheiro para a volta, não é porque tinha esperança? Oras, eu afirmo que não teria tal coragem, a não ser que eu estivesse numa situação desesperadora. Mas, mesmo assim, não sabia ler, mal tinha inteligência para se expressar, que chances ele teria? Mesmo voltando para Belo Horizonte, para a família dele, diga-me, se for capaz, caro leitor, qual seria a sua chance? Voltaria, feliz por reencontrar a família, com muito boa vontade para melhorar sua condição de vida… mas e daí? Quanto tempo até ele voltar a passar fome? E seus filhos, sem uma boa educação, como ajudariam o próprio pai?

Como quebrar este ciclo vicioso infernal?

Maldita é a sociedade que nega o direito à moradia para 6 mil pessoas para dar a um único indivíduo corrupto, egoísta e rico o direito a ter ainda mais dinheiro! Maldita é a sociedade que olha com desdém para essa injustiça simplesmente para assegurar seu direito à ganância! Maldita é a sociedade cujos cidadãos ainda não aprenderam que o direito de um começa quando termina o do outro!

Maldita é a nossa sociedade!

Sem compaixão, sem decência, sem solidariedade, que reclama do pobre porque este invade uma terra vazia, inabitada, inútil! É mais fácil mesmo ignorar o problema, deixar os pobres que se fodam, culpá-los pelos seus próprios problemas, transformá-los em criminosos, marginalizá-los. Sociedade maldita e hipócrita que tem a barriga cheia e reclama dos que têm a barriga vazia por quererem enchê-la! Se a lei não consegue garantir para essas pessoas nem sequer o básico (moradia, comida, educação, trabalho e cultura), então, que razão eles teriam para segui-la? Oras, quem é que não transgride a lei, seja com pirataria, seja avançando o sinal vermelho?

E que raios de lei é essa, que permite e, pior, apoia um evento tão imoral quanto este?

Um dos princípios básicos da ética é que todos são iguais perante ela. Mas não há igualdade alguma quando o direito à propriedade é garantido a um indivíduo enquanto o direito à moradia (que é, diga-se de passagem, muito mais essencial) não é garantido para outros seis mil. Dizem que ninguém está acima da lei. Oras, isso é uma falsidade, a ética está acima da lei. Se a lei é contra a ética, então os transgressores da lei não são criminosos! Criminosa é a própria lei! Criminoso é o Estado que não deu aos habitantes do Pinheirinho o básico para torná-los cidadãos! Criminosa é a prefeitura de São José dos Campos que não comprou o terreno em troca de parte das dívidas da Selecta para entregá-lo aos moradores! Criminosa é a justiça que não desapropriou o terreno pelo bem público e que não buscou um acordo justo entre a Selecta, a prefeitura e os moradores! Oras, justiça é só o seu nome! Criminoso é o Estado de São Paulo que expulsou-os de lá à força e com violência sem antes providenciar lugar para eles passarem a morar e os amontoou num ginásio feito mercadoria acumulada nos estoques de um supermercado! Criminosos são os agentes da lei que pensam que estão acima da ética!

Criminosos somos nós, sociedade maldita e desumana, que tratamos eles como cachorros e depois reclamamos quando levamos uma mordida!


Manifesto pela Denúncia do Caso Pinheirinho à Comissão Interamericana de Direitos Humanos

Mande mensagens em nome do Pinheirinho

sábado, 7 de janeiro de 2012

Em busca do Jesus histórico 7: Júnia, a apóstola, e as mulheres na visão de Paulo

A característica mais interessante de Paulo, o famoso apóstolo, é que ele prega uma certa igualdade entre homens e mulheres dentro das igrejas. Esta é uma visão dissonante com os padrões da época e especialmente com os padrões do cristianismo que iria se desenvolver no mundo depois de algumas décadas. Ele dava às mulheres vários direitos, incluindo que elas falassem nas igrejas e - pasmem! - que elas liderassem-nas.

Apresento como referência a aula do historiador do Novo Testamento Dale B. Martin.


O direito das mulheres, de acordo com Paulo

Paulo, o apóstolo
Em 1 Tessalonicenses 4, o apóstolo dirige-se à igreja como se houvessem apenas homens membros. Cronologicamente, esta é sua primeira carta (em 51 d.C.), e percebe-se que, com o tempo, isso muda: as comunidades cristãs deixam de ser clubes-do-bolinha e Paulo (em 53 ou 54 d.C.) decide dirigir-se diretamente às recém-chegadas:

No tocante às coisas sobre que me escrevestes, bom é que o homem não toque mulher; mas por causa das fornicações, cada um tenha sua mulher, e cada uma seu marido. O marido pague a sua mulher o que lhe deve, e da mesma maneira a mulher ao marido. A mulher não tem domínio sobre o seu corpo, mas sim o marido; e da mesma forma o marido não tem domínio sobre o seu corpo, mas sim a mulher.

Então, ao contrário do que se vê em outras partes da Bíblia, Paulo está dando uma ideia de reciprocidade. No matrimônio, não apenas a mulher pertence ao marido, mas o marido também pertence à mulher. E ele vai ainda mais longe:

Aos casados, porém, dou mandamento, não eu, senão o Senhor, que a mulher se não separe do marido (mas se ela se separar, fique sem casar, ou reconcilie-se com seu marido); e que o marido não deixe a sua mulher.

Desenho mostrando o uso de véu por cristãs
primitivas
nos séculos II e III

É fato também que ele coloca as mulheres num patamar inferior dos homens:

Mas quero que vos saibais que Cristo é a cabeça de todo o homem, e o homem é a cabeça da mulher, e Deus é a cabeça de Cristo.

Todo o homem quando ora, ou profetiza, tendo a cabeça coberta, desonra a sua cabeça. Toda a mulher, porém, quando ora, ou profetiza, não tendo a cabeça coberta, desonra a sua cabeça; pois é uma e a mesma coisa como se estivesse rapada. Portanto se a mulher não se cobre com véu, seja também tosquiada; mas se é vergonhoso à mulher o ser tosquiada ou rapada, cubra-se ela com véu.


Portanto se a mulher não se cobre com véu, seja também tosquiada; mas se é vergonhoso à mulher o ser tosquiada ou rapada, cubra-se ela com véu.
1 Coríntios 11:5-6


Todo o homem quando ora, ou profetiza, tendo a cabeça coberta, desonra a sua cabeça.

Toda a mulher, porém, quando ora, ou profetiza, não tendo a cabeça coberta, desonra a sua cabeça; pois é uma e a mesma coisa como se estivesse rapada.
1 Coríntios 11:3-5

Agora, comparemos os versículos acima com estes:

Como em todas as igrejas dos santos, as mulheres estejam caladas nas igrejas; pois não lhes é permitido falar, mas estejam em sujeição, como também diz a Lei. Se, porém, querem aprender alguma coisa, perguntem-na em casa a seus maridos; porque é vergonhoso para uma mulher o falar na igreja.

Estranho, não? De um lado, o missionário dá a entender que mulheres podem profetizar - desde que estejam de cabeça encoberta - e de outro, ele explicitamente ordena que elas se calem nas igrejas.

Antes de tentar dar piruetas e tentar "interpretar" esta última perícope, caro leitor, saiba que há uma explicação bem mais simples. Ao leitor dedicado, peço que leia o capítulo 14, ou ao menos a partir do versículo 30. O assunto sendo tratado são profecias, orações em língua, pregação, entre outros. Veja como a perícope acima salta aos olhos - ela está totalmente deslocada. É uma interpolação.

Não precisaríamos mais do que isso para ter uma base (não tão sólida) para dizer que esta passagem é uma adição posterior. Entretanto, para nossa alegria, temos bem mais do que isso. De fato, este verso:
  1. aparece em posições diferentes nos manuscritos;
  2. apresenta alta concentração de variação textual nos manuscritos (como pode ser visto aqui - clique na aba "Greek");
  3. apresenta uma linguagem dissonante daquela comumente utilizada por Paulo;
  4. rompe  com o fluxo do texto;
  5. é demarcado como problemático pelos escribas.
Vale lembrar que as características acima também se aplicam à Perícope da Adúltera (como foi discutido em outro texto).

Esta passagem problemática não foi citada por nenhum dos escritores cristãos do século II (em especial, Clemente de Alexandria), exceto Tertullian, por volta de 200 d.C., apesar de seu conteúdo chamar muito a atenção pela sua forte restrição. As evidências são muitas, esta é uma fraude óbvia. Isso mostra que os escribas cristãos faziam alterações nos textos cristãos por motivos ideológicos.


Febe, a diaconisa, e Júnia, a apóstola

Febe
Então, as mulheres, na opinião de Paulo, podiam orar e profetizar nas igrejas. Isso fica evidente também na carta aos Romanos, capítulo 16, onde o pregador cita várias mulheres envolvidas nas igrejas, muitas vezes em posição de destaque. Febe (em inglês, Phoebe), Prisca (ou Priscila), Maria, Trifena Trifona, Pérside... Ao longo das décadas, entretanto, houve relutância em aceitar esta possibilidade e, por isso, algumas palavras foram traduzidas de uma forma que hoje é contestada pelos historiadores.

Recomendo-vos a nossa irmã Febe, que está no serviço da igreja em Cencreia, para que no Senhor a recebais dum modo digno dos santos, e a ajudeis em qualquer coisa que de vós precisar; porque ela tem sido protetora de muitos, e de mim em particular.

Vejamos esta outra possível tradução:

Recomendo-vos a nossa irmã Febe, que é diaconisa da igreja de Cêncris.

A palavra com a tradução problemática é diakonos, que pode significar tanto diácono quanto servo. Entretanto, pela colocação na frase, está claro que a tradução mais apropriada é diácono. O engraçado é que a palavra está no gênero masculino, o que reforça a ideia de que se trata de um título e que a Paulo está efetivamente considerando-a como diaconisa. Está claro que traduzi-la como servo é uma questão cultural: se o nome fosse masculino, não haveria hesitação em traduzir esta diakonos como diácono.

Outro versículo que chama a atenção neste mesmo capítulo é o seguinte:

Saúdem Andrônico e Júnias, meus parentes que estiveram na prisão comigo. São notáveis entre os apóstolos, e estavam em Cristo antes de mim.

Andrônico, Atanásio de Alexandria e Júnia
Este versículo apresenta variações na tradução. Júnias é um nome masculino. Entretanto,  o nome que consta no manuscrito está na sua forma acusativa, Iounian, que, portanto, pode também referenciar-se a Júnia, um nome feminino. Como podemos decidir entre os dois nomes, então? Outro problema é o texto diz que eles eram apóstolos notáveis ou se os apóstolos os estimavam. Ou seja, será que Júnia(s) era um(a) apóstolo(a)?

É claro que o conceito de apóstolo para Paulo não se limitava aos doze - afinal, ele se denominava apóstolo e afirmou não ser um deles.

Os primeiros cristãos, ao ler a carta de Paulo, entenderam que se se tratava de uma mulher. Todos os pais apostólicos (com uma exceção) referenciavam-se a ela pelo nome de Júnia. Um exemplo é Crisóstomo (347-407), que fala a respeito das mulheres em Romanos 16.



De fato, serem apóstolos já é um grande feito. Mas ainda ser notável entre eles, imagine como isso deve ser uma grande honra! Mas eles eram notáveis pelos seus trabalhos, suas conquistas. Oh! Como é grande a devoção desta mulher para que ela seja digna da designação de apóstola!
Crisóstomo (p. 554, 555 - tradução livre)


Note que este cristão não era nenhum feminista, tendo dito que, "dos animais selvagens, nenhum é mais danoso que a mulher".


A exceção que mencionei é Epifânio (438-496), que citou o nome Júnias. Entretanto, ele também cometeu o erro de referenciar Prisca (Romanos 16:3) como Priscus, outro nome masculino. Portanto, a referência de Epifânio é duvidosa.


O fato que mais aponta para o nome Júnia é que este nome foi encontrado em mais de 250 textos na antiguidade, mostrando que este era um nome bem comum (como abreviação de Junianas), enquanto que a forma masculina Júnias não foi encontrada em lugar algum!


Sendo assim, aparentemente, a tradução histórica de Iounian como Júnias - que começou no século XII - foi puramente por motivos ideológicos. O mesmo motivo ideológico que levou ao acréscimo de 1 Coríntios 14:33b-35 por escribas do século II em diante. De fato, os cristãos da Idade Média tentaram negar e encobrir a verdadeira identidade de Júnia. Ela era uma mulher e era apóstola.

Febe e Júnia são veneradas em algumas religiões cristãs, especialmente na Igreja Ortodoxa e nas igrejas não-calcedonianas (às vezes conhecidas como igrejas ortodoxas orientais).


A conclusão que tiramos disso tudo é que a noção que apenas homens podem liderar as igrejas de hoje não tem fundamento histórico.


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quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Os santos "incorruptos": como mentiras se tornam verdade

É a mão divina estendendo-se sobre os corpos desses indivíduos exemplares como testemunho de sua santidade. Incorruptos na vida, incorruptos também na morte. Mesmo após séculos desde a morte deles, seus corpos estão tão bem preservados que eles até parecem estar dormindo. E não só isso: ao contrário do que comumente acontece com cadáveres, estes não fedem a podridão da morte, mas exalam o perfume da santidade. Santa Bernadete - talvez o caso mais famoso - parece estar à espera do beijo de um príncipe encantado. Um verdadeiro milagre, é impossível que haja outra explicação.

Bem, pelo menos, isso é o que dizem por aí. Há inúmeras na Internet afirmando que a incorruptibilidades dos santos é verdadeira e que a ciência não consegue encontrar uma explicação plausível, natural para este fato... Então só pode ser verdade!

Santa Bernadete de Lourdes
Será?

Vamos analisar a história do corpo de Santa Bernadete após a sua morte, em 1879. Note-se que o site contando a história é católico. Trinta anos após a sua morte, o corpo foi exumado para ser examinado para processo de canonização. Um cirurgião e um doutor examinaram o corpo sob juramento. O estado de preservação do corpo era "perfeito" (sic).

O hábito estava umedecido, o rosto estava pálido. Ao remover o hábito, perceberam que os membros estavam rígidos e tensionados - e, de fato, o corpo todo estava rígido, de tal maneira que eles puderam virar e desvirar o corpo. As costelas estavam protuberantes e o estômago estava afundado. As partes mais baixas do corpo estavam enegrecidas, o que "parecia ter sido resultado do carbono que foi encontrado em grandes quantidades no caixão". As freiras que acompanhavam o procedimento lavaram o corpo e colocaram-no em um novo caixão. Nas poucas horas que o corpo ficou exposto ao ar, ele começou a escurecer. O caixão foi selado e guardado.

Escurecer? Hum...

O próprio texto diz que a preservação do corpo não é necessariamente milagre, mas pode estar ligado com as condições em que o corpo foi sepultado.

Dez anos depois, o corpo foi novamente exumado e analisado por dois doutores. O corpo estava praticamente mumificado. A pele estava ausente em alguns lugares, embora ainda estivesse presente na maior parte do corpo. Algumas das veias estavam ainda visíveis. Os músculos estavam atrofiados, mas bem conservados, a pele estava enrugada devido aos efeitos da umidade do caixão.

A última exumação se deu em 1925. Nesta ocasião, o corpo foi envolto em faixas, exceto no rosto e nas mãos. O rosto foi impresso para que a firma de Pierre Imans de Paris pudesse criar uma leve máscara de cera baseada nesta impressão e nas fotos disponíveis. Isto era uma prática comum, pois o enegrecimento da face e afundamento dos olhos poderiam dar uma impressão desagradável ao público.

Convido-o, caro leiro, a examinar as máscaras de cera nas fotos de vários santos. Veja também quantas vezes a palavra wax (cera, em inglês) aparece nesta página que defende que a incorruptibilidade dos santos é um milagre.

É assim, caro leitor, que se esconde a verdade, para que o povo não "perca a fé" - ou seja, não questione e continue pagando o dízimo. Com uma máscara de cera.

São Pio de Pietrelcina
Nos últimos 15 anos, entretanto, uma nova visão dos Incorruptos começou a emergir. A pedido do Vaticano, patologistas, químicos e radiologistas italianos estiveram estudando os corpos de homens e mulheres antigos enterrados nos relicários das igrejas. [...]

Em Cortona, Fulcheri juntou-se aos outros examinadores, fazendo o juramento requisitado a todos os participantes de tais procedimentos: ele jurou respeitar os restos dos santos, de não pegar nada e de dizer a verdade a respeito das suas descobertas. Então ele e seus colegas romperam os lacres do relicário e carregaram o corpo da santa [Margarita] a uma área privada da catedral. Conforme Fulcheri levantou gentilmente a borda de seu vestido sobre suas pernas, todos os reunidos começaram a murmurar. Várias longas incisões haviam sido feitas ao longo de suas coxas; havia outros cortes mais fundos ao longo do abdome e peito. Claramente feitos após a morte, eles haviam sido costurados com uma linha grossa e preta. Santa Margarita fora artificialmente mumificada.

Investigando documentos históricos e eclesiásticos, Fulcheri fez uma descoberta surpreendente: "As pessoas [de Cortona] pediram à Igreja que a embalsamasse," diz ele. De acordo com os relatos, eles fizeram este pedido publicamente. Mas ao longo dos séculos, este fato havia se perdido. As pessoas assumiram, dado o estado do seu corpo, que ela havia sido preservada por um ano divino. Os reconhecimentos canônicos realizados no corpo pouco fizeram para corrigir o relato. Os examinadores detectaram a fragrância dos unguentos e especiarias sobre ela, mas eles estavam muito embaraçados para fazer nela um exame físico completo. "Eles haviam puxado seu vestido para trás, mas só um pouco para ser sincero," observa Fulcheri.
(Cópia disponível neste link)

O texto acima fala sobre a mumificação artificial que foram feitas em outros santos: Santo Emiliano, São Gregório Barbarigo, Santa Clara de Montefalco, Beata Margarita de Metola, Santa Catarina de Siena, São Bernadino de Siena e Santa Rita de Cássia (os últimos cinco receberam cortes de forma similar à Margarita de Cortona). O Padre Pio também não escapa à lista dos embalsamados - e, apesar disso, seu rosto estava degradado na sua exumação, 40 anos após sua morte, e, por isso, foi colocada sobre seu corpo uma máscara de cera. Há outros santos cujas tumbas favoreceram a preservação dos corpos por suas condições químicas e de temperatura, causando uma mumificação natural.

Santa Clara de Montefalco
A preservação de corpos varia muito com as condições ambientais a que o corpo é submetido. Isso, de fato, não é completamente compreendido pela ciência. Frequentemente, porém, há confusão entre as pessoas quando se diz que a ciência não compreende algo - isso não é nem de longe prova de que não há uma explicação e nem mesmo que a ciência não é capaz de chegar a uma conclusão. Se a ciência não compreende, é porque falta evidências ou tempo de pesquisa para encontrar a resposta à pergunta.

Afirmar a ausência de explicações por parte da ciência é prova de que há um milagre é uma falácia conhecida como argumentum ad ignorantiam (argumento da ignorância).

Os santos católicos não são em nada especiais - há santos da Igreja Cristã Ortodoxa, monges budistas e até pessoas comuns cujos corpos se preservaram acima do comum. Cerca de 20 budistas sofreram mumificação após uma rigorosa dieta para emagrecer e tornar o corpo tóxico a parasitas, permanecendo isolados numa caverna, que era selada por um tempo após o falecimento para depois ser aberta para verificar se ocorreu a mumificação.

O vídeo abaixo atesta que os cientistas estão "perturbados" com a preservação do monge Lambo Lama Liigelov. Entretanto, sabe-se que seu corpo foi preservado com sais de brometo.


Há interesse tanto religioso quanto financeiro nas relíquias de santos e é por este motivo que eles são frequentemente embalsamados e desenterrados. A enorme quantidade de relíquias de santos com preservação acima da média é demonstração, não de algum milagre, mas de como as pessoas têm um fascínio por eles. Quer eles mereçam tal fascínio, quer não.

Quero chamar-lhe a atenção, caro leitor, a todo este rebuliço acerca dos corpos dos santos. Se alguém desenterra um indivíduo qualquer - que, sabe-se, não foi nenhum santo - e percebe que seu corpo está razoavelmente preservado, pode até se espantar, mas não sairá gritando "milagre" pelos telhados. Muitas vezes testemunhei o fascínio de leigos pelas múmias egípcias, afirmando que muitas delas estavam inexplicavelmente preservadas, mas nenhum deles testemunhava que a única explicação para isso seria uma intervenção sobrenatural.

Por outro lado, se o corpo é de um santo... as pessoas tornam-se extremamente crédulas. Qualquer sinal de preservação - por menor que seja - torna-se, do ponto de vista dos fiéis, inexplicável, até mesmo para a ciência, senão por milagre. Os fatos são cada vez mais exagerados conforme são transmitidos de boca em boca e poucos se preocupam em certificar-se de que os relatos são verdadeiros. Em pouco tempo, aparecem páginas de Internet com aparência de científicas atestando para a incontestabilidade da existência de milagres, apesar dos autores não terem sequer estudado putrefação de corpos.

E assim fica a lição: relatos populares são exagerados. As pessoas acabam por inventar algumas mentiras e exagerar outras para defender seu próprio ponto de vista. De forma não intencional, diga-se de passagem, e é exatamente por isso que elas soam tão convincentes: pois não são mentiras maliciosas, mas sinceras.

O mais revoltante nisso tudo não é a confusão ou a credulidade do povo, mas a (falta de) posição do Vaticano. Não é interessante o quanto a Igreja se pronuncia com tanto vigor acerca de coisas que ela não sabe? Por exemplo, as vontades divinas, entre tantas outras coisas que são impossíveis de se saber e, principalmente, de se contestar. Entretanto, quando se trata de algo que ela realmente sabe, mas que seria inconveniente para ela que as pessoas soubessem, ela se cala feito uma porta! Afinal de contas, que problema há em transgredir o sétimo mandamento em nome da fé, não é? Que mal há em enganar as pessoas - ou deixar de esclarecê-las - para que elas continuem a acreditar? Para a Igreja, ironicamente, é inconcebível que as pessoas se "enganem" a respeito da camisinha, "achando" que ela é permissível, mas que elas não saibam que santos foram embalsamados e receberam máscaras de cera, ah, aí não tem problema! Que as pessoas continuem caminhando de joelhos para pagar promessas aos santos, isso lhe é extremamente conveniente e não lhe pesa nem um pouco na consciência que o façam por uma ilusão.

Desde que continuem católicas, não há problema algum!

Alguém no passado cometeu um enorme erro ao dizer que fé é uma dádiva divina, um presente do Espírito Santo. Quando percebe-se que os mais esclarecidos, em nome da fé, permanecem de braços cruzados enquanto os fiéis iludem-se uns aos outros, isso é sinal de que a história foi longe demais. É uma ilusão acreditar que agir de tal maneira é justo e bom "aos olhos de Deus", quando, de fato, estão mascarando a verdade com uma máscara de cera. Ao venerar os santos como seres extraordinários, a santidade torna-se inalcançável e os santos, inimitáveis. Como santidade é erroneamente confundida com bondade, o resultado é que as pessoas acabam por concluir que bondade é difícil, um fardo, que é alcançada através da fé, da religiosidade e que a mais verdadeira e pura bondade está reservada a estes semideuses os quais chamamos santos. Mentiras e mais mentiras vão se tornando verdade sem que ninguém perca o sono por isso.
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