quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A velha na janela

A velha vai aparecer para nos assustar. É isso o que eu ouvia enquanto simplesmente respirava, deitado, olhos fechados, esperando adormecer. Ignorei a conversa, é claro, tão claro quanto Catatau não fizera o mesmo, dizia estar com medo da velha. Ele deveria compreender que aquela história, já tinha consciência sem tê-la ouvido, era ridícula. Sem dúvida, apenas mais uma estória apelando ao estereótipo de bruxa. No dia seguinte, tivesse a oportunidade, deixaria isso claro na mente dele. As vozes e os risos, que antes ocupavam o ar, aquietaram-se. Ouço passos e o remexer do colchão que estava reservado ao pequenino. Um sussurro rompeu o silêncio.

- Você está dormindo?

Abri os olhos, virei o rosto e vi o vulto de um menino quase deitado, cotovelo sobre o colchão e a cabeça curiosa levantada na expectativa de que eu estivesse acordado. Queria conversar.

- Isso foi um sim? - voltou ao indagar, inquieto com o meu silêncio.
- Está falando comigo?
- Sim.

Não falamos sobre a velha, mas sobre praia e qualquer outra coisa. Ele decerto queria espantar o medo conversando com o primo, o mais velho entre os meninos. Ele tem segurança, não deve ter medo de histórias de terror. De fato, é difícil que eu consiga ver terror num filme do gênero, quanto mais numa pequena fábula inventada para espantar o menorzinho.

Manda-Chuva, irmão mais velho do Catatau, entra no quarto. Catatau diz que Tico, seu irmão, e Teco, amigo deste, planejavam nos assustar de alguma forma. Manda-Chuva fecharia a porta e ligaria o ventilador. Sugeri que deixassem a porta aberta. Não, não pode, a velha pode aparecer. Ah, claro, a velha.

- Não se preocupe, Catatau, - dizia o Manda-Chuva, - eu e o Bandeirinha não vamos deixar a velha lhe pegar.

Não concordo com esse tipo de atitude. "Não se preocupe que o bicho-papão não vai lhe pegar, estamos aqui pra lhe proteger." Não, ele precisava compreender o óbvio, não fugir dele.

- Acho muito estranho essa história de "velha".

Escutei um "por quê?" duplo e o breve silêncio à espera de uma resposta após morder na isca. Adoro esse silêncio.

- Alguém já viu velha fazer mal a alguém?
- Já vi, nos filmes, - respondeu Catatau.
- Ah, nos filmes, é claro. Já as velhas eu que conheço são do tipo "ah, coma mais um pouquinho..."
- Mas essa velha só aparece na janela com uma faca na mão para assustar, depois foge.
- Ela só assusta? Então ela é boazinha.

Pausa para assimilar. Ponto pra mim. Risos. Catatau ri engraçado, ele não é apenas uma criança, é quase um estereótipo.

- Ah, imagine uma velha com uma faca na mão, deve assustar bastante. E se ela, do nada, aparece na porta da sacada, já pensou?
- Mas como ela faria para chegar aqui na sacada?
- Voando, - replicou o Manda-Chuva.
- Mas como? Ela é o super-homem.
- Ela é uma vampira.

Ahm? Vampira?

- Então pra quê a faca?

Mais uma pausa para pensar. A faca é só para assustar, ah, então tá. E deve assustar, afinal, imagine uma velha com uma faca na mão. A não ser que ela esteja passando manteiga no pão. Mais risos.

- Você está distraído e de repente vê a velha pelo espelho, atrás de você, com uma faca, passando manteiga no pão.
- Mas tem que ser no banheiro, - dizia Catatau, - porque é lá que eles falaram que a velha aparece.
- No espelho do banheiro? - indaguei.
- É, - dizia, num tom de "qual o problema?"

- Mas não era na janela?

Mais pausa e mais risos. Ninguém conseguiu entender. Mas é bem fácil entender: trata-se de uma estória criada em camadas. A velha na janela com uma faca é uma camada. Avelha no espelho do banheiro é outra, criada para deixar a primeira mais assustadora. A velha vampira é outra velha. Cada uma das camadas é criada na tentativa de corrigir uma imperfeição das anteriores. Mas as camadas não concordam entre si quando são analisadas, são diferentes e inconsistentes entre si. Os ouvintes da estória, entretanto, ficam tão concentrados em ter medo da velha que não percebem os detalhes.

- Essa história tem mais furos que uma peneira! - comentava, no meio das gargalhadas que custavam a se extinguir.
- Essa história tem mais furos que as vítimas da velha! - comentou o Manda-Chuva, provocando ainda mais gargalhadas.

Pensei que este comentário faria Catatau sentir medo. Tenho impressão que ele, desde o começo, no fundo, não acreditava na história, mas queria que alguém lhe tirasse qualquer dúvida de que se tratava de uma mentira. Nas histórias que se contam, ou alguém acredita, ou desacredita, em maior ou menor grau. Na vida real, não é tão simples assim. Se Catatau acreditasse na história, não teria rido do comentário nefasto do Manda-Chuva. Se Catatau não acreditasse, não teria comentado que Manda-Chuva conseguiu consertar a história.

- Não conseguiu, não! - comentei, ao que o Manda-Chuva concordou.
- Conseguiu, sim.
- Ele não conseguiu consertar nada, não, Catatau. Ele só conseguiu botar medo, mas a história tem ainda mais inconsistências. Por exemplo, ela não aparecia na janela só pra assustar? Mas agora ela tem vítimas! E ela não era um vampira? Mas vampiros só deixam dois furos. E se ela é vampira, pra quê a faca?
- Para assustar.
- Então, para assustar! E não...
- Mas essa não foi o que eu contei para o Tico e o Teco, - interrompeu-me Manda-Chuva - e a minha história não tem inconsistências. Eu vi uma velha parada na sacada aí da frente, olhando, mas de repente ela sumiu. Então eu falei com o porteiro e ele disse que tinha uma velha naquele apartamento, mas ela tinha morrido há 15 anos atrás. Depois disso, ela apareceu nesta sacada.

Tive a impressão que esta era a primeira camada, que passou da boca do Manda-Chuva às de Tico e Teco, que, por sua vez, acrescentaram mais camadas à estória, para torná-la mais palpável.

- Uma velha morando ali? - disse eu, depois de cogitar por um segundo. - Mas estes prédios, apartamentos de praia e verão, não são de morar, são de alugar. Ninguém "mora" aqui.
- Ah, não sei, foi o que o porteiro me disse.

Pude sentir a frustração do Manda-Chuva. Não que ele quisesse amedrontar o pequeno, mas deve ter se frustrado por não conseguir criar uma estória coerente.
Eu ia apresentar mais objeções, - o prédio não devia ter 15 anos, uma velha não moraria num apartamento com escada interna feito para umas sete pessoas, - mas fui interrompido, para a minha surpresa, pelas objeções do próprio Catatau. Fim de jogo, Catatau finalmente entendeu e eu sorri. Não bastava que ele soubesse que era apenas uma estória, era necessário que ele compreendesse isso. Mais do que isso, era necessário que ele aprendesse a lição: ele não precisa de mãe, pai, primo ou irmão para protegê-lo de estórias. Para isso, ele tem o próprio cérebro.

É vergonhoso para o mundo que um pivete como ele conseguiu aprender esta lição tão óbvia, mas tão menosprezada, em menos de 15 minutos. Adultos, quando seus filhos têm medo de uma estória, dizem-nos para não terem medo, que é uma mentira, uma bobagem que eles inventaram para botar-lhes medo. Estes adultos ainda não aprenderam esta lição: se é tão óbvio que é apenas uma estória, por que eles não mostram isso? Por que eles não explicam o motivo?

É óbvio, é porque eles pensam que a estória é falsa, mas não sabem por quê! Eles apenas julgam saber! Eles pensam que sabem! Mas não sabem, apenas pensam! Portanto, em vez de esclarecer, ocultam; em vez de acender as luzes, apagam-nas e deixam as crianças no escuro. Ensinam-nas: acredite em mim, não neles. Acredite em tudo o que eu disser, não duvide, não questione, não tente compreender. É bem simples: Papai Noel existe, bicho-papão não existe, coelhinho da páscoa existe, ponto, fim de papo. Por quê? Ah, por favor, faça uma pergunta mais fácil!

Barulho na porta.
- Ai, meu Deus! - exclamou Catatau. - Ah, Teco!

Catatau ria tanto que nem conseguia mais falar. Tico e Teco eram os donos dos vultos que entraram aos gritos, trancos e barrancos e que riram em seguida.

- Vocês se assustaram? - perguntava Teco.
- Claro que não, né?
- Não, mas fala sério, alguém se assustou?
- Ah, claro, nós morremos de medo, nossa! Olha o Catatau, está se acabando de tanto rir, você acha que ele ficou com medo?

Pausa.
- Ah, está bem. Mas, diga, de quê vocês estavam rindo?
- Da história que vocês dois contaram!
- É, essa história tem um monte de furos!
- Furos? Que furos?

Na tentativa de que os dois se frustrassem e nos deixassem em paz, eu disse-lhes que velhas não são assassinas. Velhas são avós, ou caducas, e às vezes podem até ser chatas, mas não fazem nada de mais. Nem sequer conseguiriam segurar uma faca. Novamente, comentaram sobre as velhas dos filmes. Ah, é claro, as velhas dos filmes são super-velhas, escalam paredes e dão saltos mortais. Contei também que hora diziam que a velha aparecia na janela, hora no espelho. Riram de seu próprio embaraço.

Explicaram que a velha conseguia voar para aparecer na janela porque era um fantasma. Parei para pensar.

- Mas fantasmas podem segurar facas? Fantasmas voam?
- Sim.
- Como é que você sabe?

Pausa.

- Ah, a gente conversou com ela ali na sacada! - dizia Tico, rindo.
- É, a gente falou com ela, - confirmava Teco.

Estenderam o assunto por mais um tempo, sem tentar explicar mais nada. Eu também não falei muito, estava cansado, queria dormir.

- Vejam, - disse o manda-chuva, - nós já estamos cansados dessa estória, queremos dormir. Vão embora, deixem a gente dormir.
- É, eu não estou com medo da velha, Tico, - disse o catatau, - eu estou com medo de você, deixe a gente em paz.
- Convenhamos, todo o mundo sabe que a velha não existe, - complementou o manda-chuva.

Os dois saíram do quarto e a velha faleceu.

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