terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Minha compreensão sobre religião 1: Alienação?

Como estou acostumado a discutir com pessoas com várias opiniões diferentes pela Internet, já encontrei muitas visões diferentes acerca do que é religião, quais seus males e benefícios, e sobre secularismo. Apesar de tantas opiniões, ainda não encontrei nenhuma reflexão profunda acerca do problema ético: o que na religião é bom e o que é ruim? Após vários estudos e discussões, ainda não julgo ser capaz de responder esta pergunta por completo e definitivo, mas ao menos acredito ter alcançado um começo de resposta.

Uma afirmação bastante comum é que a religião é intrinsecamente má. Dizem que a religião é um instrumento de alienação das pessoas, fazendo-as crer em coisas imagináveis e absurdas, muitas vezes perniciosas, o que tende a levá-las a um comportamento fanático, intolerante. Embora haja algum mérito nesta afirmação, ela não é verdadeira e acredito que a melhor forma de demonstrar isso é analisando o cristianismo primitivo.

Os evangelhos do Novo Testamento (em especial os três primeiros), quando entendidos em seu devido o contexto histórico, revelam forte conteúdo político contra o Império Romano. No século I, sempre que se falava em reino, entendia-se implicitamente que era o Império Romano. Nos três primeiros evangelhos, Jesus pregava dizendo que o Filho do Homem viria logo dos Céus para estabelecer um novo reino, o Reino de Deus, um reino justo em que fariam parte os pobres e oprimidos. Seguindo o óbvio raciocínio lógico, o Império Romano não era um reino justo, o imperador não era um imperador legítimo e ambos seriam destruídos e substituídos por Deus. Entre os ricos da Galileia e da Judeia estavam os romanos, os sacerdotes do templo (que tinham ligações políticas com os romanos) e os cobradores de impostos.

Outro exemplo bastante notável é o incidente no templo em Jerusalém, onde Jesus derruba as mesas de alguns cambistas, evento que, sem dúvida, eventualmente o levou à morte. O comércio no templo era exatamente o que sustentava a vida luxuosa dos sacerdotes e os impostos que eles pagavam aos romanos para que estes garantissem o "bom funcionamento" do templo. Tal bom funcionamento incluía impedir que pessoas "impuras" ou "pecadoras" segundo a lei judaica entrassem no templo. Levando isso em consideração, os milagres de Jesus, seu questionamento à ideia de impureza (Mateus 15:1-20) e sua aceitação aos pecadores ganham um novo significado.

Muitas pessoas duvidam da existência histórica de Jesus por "falta de evidências" e, na minha opinião, elas estão equivocadas, mas isto é irrelevante para este texto. O que importa é que tanto o cristianismo quanto estes evangelhos existiam no século I.

A maior evidência desta forma de compreender o cristianismo primitivo é a carta do governador Plínio, o jovem, ao imperador Trajano. Vejamos alguns trechos dela:

Senhor:
[...]
Esta foi a regra que eu segui diante dos que me foram deferidos como cristãos: perguntei a eles mesmos se eram cristãos; aos que respondiam afirmativamente, repeti uma segunda e uma terceira vez a pergunta, ameaçando-os com o suplício. Os que persistiram mandei executá-los pois eu não duvidava que, seja qual for a culpa, a teimosia e a obstinação inflexível deveriam ser punidas.
[...]
Os que negavam ser cristãos ou tê-lo sido, se invocassem os deuses segundo a fórmula que havia estabelecido, se fizessem sacrifícios com incenso e vinho para a tua imagem [...] e se [...] amaldiçoavam a Cristo [...] achei melhor libertá-los.
[...]
Outros [...] haviam sido e depois deixaram de ser, alguns há três anos, outros há mais tempo, alguns até há vinte anos. Todos estes adoraram a tua imagem e as estátuas dos deuses e amaldiçoaram a Cristo, porém, afirmaram que a culpa deles, ou o erro, não passava do costume de se reunirem num dia fixo, antes do nascer do sol, para cantar um hino a Cristo como a um deus; de obrigarem-se, por juramento, a não cometer crimes, roubos, latrocínios e adultérios, a não faltar com a palavra dada e não negar um depósito exigido na justiça.
[...]
O assunto parece-me merecer a tua opinião, principalmente por causa do grande número de acusados.

O cristianismo, portanto, cresceu e tornou-se um inconveniente para o Império Romano. Esta carta evidencia o que incomodava tanto o imperador no cristianismo: a desobediência e a rejeição da divindade do imperador. Afinal, uma dominação militar e política requer também uma dominação ideológica, dominação à qual o cristianismo (entre outras crenças não romanas) era uma ameaça.

Há, entretanto, um detalhe que não pode ser ignorado: a arma usada pelo Império Romano contra as religiões ideologicamente contrárias a ele era a religião romana! Assim, vemos aqui a religião tomando dois papéis distintos e contraditórios. A religião romana era usada como instrumento de alienação e dominação ideológica pelo Império. Ela desempenhava o papel de justificativa: se o imperador era um deus, então tinha o direito de dominar os outros povos. O cristianismo primitivo, por outro lado, era uma arma de ninguém que Roma não conseguia controlar, diversificado, capaz de adaptar-se às diferentes culturas e épocas, criado pelo próprio povo.

Um instrumento contra a alienação! Ou ao menos contra a alienação de Roma.

Mas, no fim das contas, o Império Romano venceu. Para isso, ele usou o próprio cristianismo. Como diz o ditado, se não consegue derrotar o inimigo, una-se a ele. Foi isso o que Constantino fez com o cristianismo, que se tornou seu eficiente instrumento de dominação ideológica. Surge, então, uma nova Igreja Católica, o cristianismo regularizado e padronizado pelo Império Romano. Todas as questões organizativas deveriam passar por Roma. Foram feitos concílios para que houvesse uma única crença cristã, o que eventualmente levou à canonização dos livros aceitos. Afinal, um único império, uma única crença. Esta padronização atingiria o seu ápice na Idade Média, com a institucionalização da perseguição aos hereges, a proibição de livros e de disseminação de crenças pagãs.

Durante toda a Idade Média, o catolicismo funcionou como arma ideológica para a manutenção do poder dos reis e até dos senhores feudais. Afinal, segundo a crença católica, "todos os líderes são escolhidos por Deus e devem ser obedecidos". Os reis têm o direito divino de governar, são sempre bons e justos. Esta ideologia é ainda hoje vista em desenhos, contos de fadas e filmes: um rei só pode ser mau ou injusto se não for o legítimo herdeiro do trono.

Continua...
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